
Por que menti
Relembro, verão a propósito de quê, os meus distantes tempos do liceu em que, certa vez, fui chamado ao reitor porque tinha dado uma falta a mais a ginástica, o que me ia fazer perder, desde logo, o ano em todas as disciplinas.
No sombrio e sinistro gabinete onde poucos entravam, transido de pavor, fui sujeito a um relambório de martírio que, como podem apreciar, nunca mais pude esquecer.
A palestra foi ou pareceu-me longa e dela recordo com exactidão que, já no fim e quando considerava tudo perdido, me foi perguntado se ia à missa aos domingos e se me confessava regularmente. Que sim, sussurrei eu piedosamente num berro reprimido, agarrado à tábua que do céu me era lançada.
Fui em paz condicional e, desde aí, passei a desenvolver o raquítico arcaboiço e a flácida musculatura com todo o fervor para me redimir da falta e passar de ano. Ainda hoje me penitencio, não tanto por ter mentido para me safar, mas por temer ter convencido o crédulo homem de que ia abraçar a carreira eclesiástica.
Na Assembleia da República, e aqui está a razão do despertar das minhas recordações, como acabámos de confirmar nos últimos tempos numa zanga de comadres, a maioria dos nossos 230 representantes não põe lá os pés; mesmo às quintas-feiras, o dia escolhido como o melhor para proceder às votações semanais com o máximo de gente e o mínimo de decoro. Vá lá!
Em qualquer caso os resultados não sairiam aparentemente viciados porque um acordo, dito de cavalheiros, garantia a eficiência dos trabalhos e não vinha nenhum mal ao (seu) mundo se a sala estivesse às moscas logo que pelo menos uma delas, de cada partido e não considerada morta, fizesse o favor de por ali poisar.
Mas, o que mais me impressiona é que esses “gentlemen”, em regra trabalhadores de vários rendosos ramos, sequestrados nos seus afazeres, e outros pára-quedistas da política, encarcerados em ócios mais lúdicos, com ou sem o “agreement”, faltem despudoradamente e não sintam o dever (já não falo em elegância) de justificar as suas faltas, antes que um “reitor” mais rígido os venha a chamar, um a um, ao seu gabinete, ameaçando-os com a perda do mandato.
Ia certamente ouvir invocar, na maioria dos casos, motivos falaciosos impróprios de gente crescida, e certamente não ia acreditar (sei eu agora!) que eles tivessem passado os dias em clausura a rezar o terço e a martirizar o peito.
Enfim, não lhes ficava tão mal. Nem, tão-pouco, poderiam um dia arrastar uma penosa mágoa como a que ainda hoje me atormenta quando me vem à mente a história daquela minha longínqua mentira infantil.
*** alguns deputados da AR dão, sem qualquer pudor, desculpas vergonhosas
para as suas ausências. Estes, não fazem lá falta.