Pássaros de mama
Não sei se já repararam na enorme variedade de mamíferos apassarados (ou aves "amamiferadas", como queiram) que por aí esvoaçam, pairam, saltitam ou correm à nossa volta.
Com estes anos todos que já me pesam no lombo, cheguei, confesso que tarde, à conclusão que o homem, esse mamífero que deveria ser erecto e peludo, é o parente mais próximo das aves, embora haja alguns espécimes com pronunciadas afinidades com os répteis e com os batráquios de quem não vou falar, por deles ter medo e muito nojo me fazerem. Duvido, cogito eu agora, se esse tal peso que me carrega o lombo e que eu atribuo aos anos, não será também uma manifestação de alado que eu sou e trago aninhada no meu ADN.
Vejamos o que me faz pensar assim, sem pretender sapientemente imiscuir-me em áreas desta natureza, pois eu não sou um ornitólogo qualificado nem um simples passarinheiro.
Entre os mamíferos apassarados, o mais vulgar é o pardal. Sempre atento aos nossos deslizes, fugidio, irrequieto e saltitante, ninguém lhe deita a luva em cima. Procura enganar-nos por todos os meios, contentando-se, feliz, com migalhas dispersas, embora vá fisgando, com os seus olhos muito vivos, melhores e mais suculentos manjares.
Mais qualificado, aparece a seguir o pardalão, que é uma espécie de pardal graduado. Enrola os seus subalternos acima mencionados, e engana-nos a todos nós usando métodos rebuscados de "ornitopulhice" que nos deixam verdadeiramente apardalados. O pardalão, não se contenta com migalhas, embora não as enjeite e vá debicando.
Temos a seguir o melro, no seu luto rigoroso, sempre a armar ao sentimento. Requinta na golpada, especialmente se calha ser dos de bico amarelo. E nós, os mamíferos correntes, que deveríamos ter o corpo coberto de pelos, ficamos quase sempre depenados depois de termos caído como patos nas suas artimanhas.
Há também as águias que, tendo ou crendo ter jeito para tudo, também não desdenham dar-nos a sua bicadazinha traiçoeira. As águias, diga-se, têm, em maior ou menor grau, mérito e valor, e se entre elas há algumas que se armam em parvas, isso é coisa de esperar no meio de tanta passarada. Se tiveram a sorte de ascendentes seus, mais fogosos e anti-racistas, terem caído em aventuras amorosas com melros de bico amarelo, poderão chegar a postos elevados na hierarquia avícola, se houver o feliz acaso dos cromossomas de cada uma daquelas espécies se cruzarem adequadamente.
Citemos agora o pavão, esse "mamífero" penudo e cintilante que exibe o seu leque multicor, a todos deslumbrando e enrolando, normalmente com êxito.
E o papagaio, com aquele seu reconhecido jeito para assobiar piropos e dizer palavrões, não é mesmo um encanto ouvi-lo palrar sem saber o que diz?
Poucos conhecem os recatados cucos que andam sempre à espreita de casas vagas, com ou sem escritos, e que nem de longe pensam em aderir a uma CPN (Conta Poupança Ninho). Quem de nós não ficaria chateado, de monco caído como um peru, ao chegar a casa e dar com um casal de cucos, de pata cruzada, a comer salgadinhos e a fruir da nossa televisão?
E quem não topa por toda a parte com araras e mais araras, de poleiro bem garantido, que se arrastam com visível esforço, como se andassem agrilhoadas a uma enorme bola de ferro? As araras, na sua maioria, actuam por detrás de balcões de atendimento público, onde do outro lado, à sua frente, os pobres mochos, raramente dão um pio de revolta para não complicarem ainda mais a coisa e terem de ir preencher novos impressos para o fim da bicha. A arara, para não acelerar o passo nem se chatear, enfia a cabeça na papelada, tal como faz a avestruz para não encarar a realidade, metendo a sua na areia.
Enquanto eu estiver vivo e puder voar, não me preocupam os abutres nem os urubus que eu bem sei que, de longe, me auscultam e de mim não tiram o olho. Como esses não apreciam comer-me vivo, estou-me nas tintas que depois me comam a carne toda, com a condição de que deixem a minha carcaça inacessível aos cães de voo rasteiro que durante a vida se fartaram de me rosnar às canelas.
*** O bicho homem