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Queiram desculpar

 

Sou um tímido sentimentalão sem emenda possível. Calcam-me, empurram-me, apertam-me e, no fim, temendo estar no meio do caminho, quem acaba por pedir desculpa sou sempre eu.

O brutamontes que vem atrás bate-me no carro, e lá sou eu insultado e ameaçado por ter parado "assim" de repente. Confuso, ainda agarrado ao cachaço e a olhar a minha amolgadela, lá o vejo partir incólume e furibundo, a gesticular ameaçadoramente, ficando eu com a dúvida de quem tinha razão, aborrecido até à medula por não ter tido tempo de esboçar sequer uma explicação ou lançar uma humilde desculpa.

No cinema, o espectador da frente, um moço pestilento a destilar gel ordinário, que se farta sonoramente de comer pevides de casca dura, cujas cascas deita ruidosamente para o chão, fulmina-me, na ténue penumbra da sala, quando eu, ao cruzar a perna, lhe toco ao de leve no assento. E vai de desculpar-me, correndo o risco de apanhar com o resto do saco sem fundo das pevides que ele segura com ambas as mãos.

Exemplos destes tenho aos montes e já bastam estes dois para apreciarem a minha sina e o raio do feitio morno com que fui contemplado.

Os leitores, com razão, começam a interrogar-se onde quero eu chegar com tão longo arrazoado. Vou já contar, apresentando primeiro a todos as minhas mais sinceras desculpas.

Ao longo de muitos anos, habituei-me a ver, ouvir e aturar um ruidoso grupo de gente que seguia devotamente a mesma ensebada cartilha, entoava loas da mesma safada pauta, batia palmas no mesmo bem ritmado compasso e agitava os braços com um dos punhos fechados na ponta.

 

Sem gravata, com o colarinho bem desapertado, lá me zurziram durante anos, enquanto os seus patrocinadores, que viviam em distantes e inacessíveis terras de promissão, onde o Sol brilhava diferente, lhes foi dando força e ânimo para dizerem o que muito bem lhes apetecia e ai de nós se os contrariássemos, com aqueles ares intelectuais de barbudos iluminados.

Com as bocas cheias de povo trabalhador, espumavam abundante saliva, como se estivessem a bochechar daqueles sabonetes da época, com que nove em cada dez estrelas de cinema se lavavam para ficarem com uma pele extremamente macia e sedutora.

Numa manhã, creio que foi de manhã, os longínquos grupos corais patrocinadores começaram a desafinar. Os de cá, que não eram duros de ouvido, toca de agitarem-se nas cadeiras à espera que soasse um lamiré que lhes repusesse o tom e aparecesse uma batuta que lhes reajustasse o tempo. De lá, todavia, nada soava, nem nada se movia. Arranjem-se, diriam eles entre si, "cirilicamante" calados.

A desafinação continuava a acentuar-se e a alastrar, e cada vez mais grupos corais, aqui e além, desataram a descambar na mesma desafinação.

O que sucedeu, esta é uma explicação que corre por aí, é que alguém, por incúria ou por maldade, lhes trocou as pautas e, vai daí, uns desataram a cantar, a princípio a medo e depois desinibidamente, o corridinho da Ucrânia, outros o vira da Lituânia, outros o malhão da Sibéria e, por aí fora, numa empolgante desafinação total que, a muitos, fez cair no fosso da orquestra.

O grupo de cá, com reputadas vozes, começou por tabela também a desafinar e a ver os mais lestos irem entoar outras cantigas para grupos corais da concorrência que, de imediato, lhes deram guarida.

Então estas dedicadas gentes, que tanto se cansaram a encher ouvidos, tanto falaram e espumaram desinteressados a pensar nos desprotegidos, mereciam ser abandonadas por uns tantos que durante anos a fio, afinadinhos como eles, tão alto elevaram as suas vozes?!

E, aqui, entro eu com o meu desgraçado feitio. Como sempre, embora tardiamente, a todos venho pedir perdão.

Já esqueci que me tentaram sanear do emprego e me sujaram o muro de ponta a ponta, por numa reunião "ad hoc"(lembram-se destas reuniões?) haverem decidido que eu, por andar de barba feita, lavado e usar gravata, era fascista, reaccionário e um execrável inimigo do povo trabalhador.

Tardiamente arrependido, vou começar a fazer gorjeios matinais e a estudar a letra da melodia de sempre, para ir cantar no coro que ainda resta, munido de uma pauta deixada caída por um trânsfuga, um grande amigo meu de infância com quem todos os dias jogava à bola e aos domingos comigo ia à missa. Chegou, por uns largos tempos, a ocupar-me a casa para lá instalar uma amorosa creche; ainda hoje muito me penitencio de para lá não ter enviado o meu filho que, na altura tinha aí uns três anitos.




*** A fuga de "arrependidos" oportunistas do PCP

 

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