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Ser professor

Ainda recordo muitos factos dos tempos da minha infância na Escola Primária de Valadares. São histórias que, enquanto por cá for andando lúcido, nunca mais irei esquecer, apesar do montão assustador de anos que já me passaram por cima, mais uns quantos que, distraído, deixei passar um tanto ao lado.  

   

Lembro, cada dia que passa mais espantado, o extraordinário nível profissional e cultural dos professores dessa minha escola, (quero frisar que era uma escola primária), e da forma altamente pedagógica como aquela Gente, muito mal paga, diga-se, sabia ensinar e cumpria o seu dever com autêntica devoção.

 

O Professor Aquino de Sousa e o Professor Manuel Pires Veloso formaram com o Professor Amadeu José dos Santos um trio inesquecível e brilhante de educadores que deixou marcas profundas em gerações e gerações de gente da minha terra, quase toda ela de origem muito humilde, a viver nos patamares mais baixos da pobreza.

 

Não queria contar os muitos que, mesmo nos dias gélidos dos invernos mais cruéis, vinham para a escola descalços, enquanto os mais abastados, traziam calçados chancas de madeira com couro preto muito brilhante por cima.

 

Também não queria dizer que a maioria deles vestia roupa mais que remendada, passada de irmão para irmão, de calças quase sempre rotas, outras cheias de fundilhos, quase sempre de outro tecido.

 

Nem queria dizer a ninguém que alguns vinham sujos de dias e dias a fio sem terem alguém que os lavasse. Muito menos queria dizer que não poucos traziam o pescoço todo picado por pulgas famintas.

 

Nem sequer queria falar dos piolhos, que também apanhei, nem do pente miúdo que havia lá em casa para ser usado, com várias passagens bem rentes, depois de a minha Mãe me ter catado meticulosamente.

 

Também não queria falar dos que, nitidamente esfomeados, (chamavam-lhe “ougados”, em vez de aguados) pediam uma bucha aos felizardos que traziam um pãozinho com qualquer coisa lá dentro para comerem no intervalo. Estou a ouvir os tais “ougados” a pedirem, num murmúrio comovente: “dá-me uma bucha!”

 

Nem desejava lembrar os invernos gélidos, com miúdos, sempre vestidos com a parca roupa de todo o ano, com as suas mãozitas cheias de frieiras, às vezes em chaga viva, a aquecerem-nas com o seu hálito como se estivessem a rezar uma prece.

 

Também não queria dizer quantos desses apanharam, mesmo assim diminuídos, uns bolos porque escreveram toda sem assento circunflexo, porque não souberam quantos eram sete vezes oito, porque se esqueceram do cognome do rei D. Afonso II, porque confundiram os afluentes da margem esquerda do Douro com os da direita, porque erraram na divisão de dezanove por dois, porque não encontraram o agente da passiva de uma oração arrevesada, porque se esqueceram de desfiar, sem falhas nem pausas, todas as preposições, os advérbios de modo, os de lugar, os de tempo e os outros mais.  

 

Apetece-me, isso sim apetece-me, contar que todos se sentavam ordeiramente, quase religiosamente, nas suas carteiras duplas com um tinteiro ao meio e dois sulcos para os lápis, as penas e as safas, sem darem um único pio, voltados para o Professor e para a parede onde indiferente estava Cristo na sua cruz, pendurado entre Carmona fardado e Salazar à paisana, com o quadro de lousa onde se escrevia a giz logo por baixo.

 

Calhou-me em sorte, muita sorte mesmo, o professor Amadeu Santos, um homem superior tido como extremamente severo, aliás, tão severo como os outros que davam a quem as merecia a sua justa e oportuna palmatoada que os que foram punidos mais conscientes, mais tarde, muito viriam a agradecer.

 

O Senhor Amadeu ensinou gerações e gerações de futuros homens que, naqueles tempos duros em que a Europa andava em guerra e se vivia uma crise que ficou na história, se ficavam na sua maioria esmagadora pela quarta - classe, mas quase todos com saber bastante para conseguirem subir pela vida fora, mais ou menos, conforme o seu esforço e o seu valor, mas, fundamentalmente, com o enorme impulso que a Escola Primária lhes dera, com aqueles professores exigentes que até o Ramal de Cáceres e o sítio onde nascem e desaguam os afluentes do Cávado nos obrigavam a saber.  

 

Muitos se ficavam pela terceira – classe, ou porque havia que ir trabalhar para sobreviverem e poder ajudar os pais, ou porque não gostavam daquela vida de intelectual sem futuro.

 

Em outras escolas, não muitas creio eu, o mesmo podia estar acontecer, mas duvido que, na maioria delas, houvesse professores de tão elevado gabarito.  

 

Já não digo mais, mas se no ensino secundário de hoje, houvesse professores assim …

 

Eu que usava botas de couro, regularmente ensebadas pelo meu Pai, não andava remendado e fui um dos raros privilegiados que pôde ir mais longe.

 

Viria pela vida fora a ter muitos outros professores, mas nunca nenhum, mesmo pensando nos melhores que se me atravessaram pelo caminho, situados noutros escalões superiores da sabedoria, quer no Liceu de Alexandre Herculano, quer mesmo na Universidade do Porto, ultrapassaram o meu professor da Escola Primária na muito nobre e difícil arte de saber ensinar.

 

Aliás, no Liceu tive como professores autênticas anedotas e na Universidade encontrei calinos de primeira água, alguns deles doutorados, como os que andam hoje por aí aos magotes, a fazerem rir à gargalhada os mais sisudos e preocupados.

 

Para ajudar a navegar honestamente o seu modesto barco caseiro, um tanto povoado de filhos, Amadeu Santos ia no comboio, pela tarde, até o Porto fazer a revisão do muito conceituado jornal diário “O PRIMEIRO DE JANEIRO”, um jornal isento e de grande dignidade, publicado na nossa cidade, sempre com a censura, com a sua típica ignorância e estupidez entranhada. a vigiá-lo zelosamente   

 

Nas suas outras horas vagas, o professor Amadeu escreveu alguns livrinhos verdadeiramente didácticos, minúsculas obras-primas humildemente encadernadas e publicadas pela Editorial Argus, no Porto, mesmo junto ao Bolhão. Eram preciosos auxiliares muito bem espremidos de Português e de História de Portugal, que religiosamente ainda conservo e de que muitas vezes me cheguei a servir, até ao sétimo ano do liceu.  

 

Amadeu Santos frequentava raramente o Orfeão de Valadares, onde foi maestro e eu um seu cantor desafinado, mas, em algumas noites calmas de Verão que tinha disponíveis, aparecia um pouco cá por baixo para, num quase monologar, ir desfiando, praticamente sem parar, pérolas verdadeiras sobre tudo o que vinha e mesmo não vinha nada a propósito.

 

De política, meu Deus, nunca se falava, (é o falas!), porque se se falasse uma vez essa teria sido a última.

Também de futebol nunca ali se falou. Embora ninguém fosse preso por falar deste eficiente narcótico político, isto não era conversa decente para se ter ali.

A camarilha então governante, como hoje acontece com as novas camarilhas desenfreadas, até gostava à farta que a malta falasse, se possível o dia todo, de futebol, futebol e, se ainda mais tempo houvesse, ainda de futebol e de mais futebol.

 

À volta do professor Amadeu juntavam-se, então, sentados em cadeiras que cada um trazia cá para fora, para o pátio de entrada do Orfeão, antigos alunos seus e outra malta de todas as idades e gerações que sorviam encantados as suas palavras sapientes, apreciavam a sua vasta cultura, entusiasmavam-se com as suas maravilhosas histórias, deixavam-se embrenhar nos seus pensamentos, tudo temperado com um pouco do fino humor que ele sabia introduzir, naturalmente, nas suas apaixonantes narrativas.

 

Quando ele aparecia, muitos deixavam tudo, as cartas, o bilhar, o pingue-pongue e as conversas de chacha e de não chacha, para o irem ouvir, atentamente, desfiar histórias e mais histórias sublimemente narradas que ele tão bem sabia encadear.

 

Recordo, mas isto contaram-me anos depois, aquela vez em que o Professor Amadeu falou numa aula de História de Portugal da epopeia dos nossos descobrimentos, entusiasmando os seus alunos, como nunca atentos, até vir a sineta, nesse dia muito importuna, tocar para o intervalo.

 

A miudagem, nos seus nove ou dez anitos, que o ouviu nessa inesquecível aula, durante os intervalos sempre aos gritos, sempre estouvada e imparável a jogar o eixo, o pião, a cagalhufa, o botão, sei lá eu o que mais, para desespero e espanto do senhor Amadeu, (era assim que toda a gente lhe chamava), nesse dia nunca mais aparecia para recomeçar a tarefa interrompida pela importuna sineta.

 

Os primeiros a aparecer, esbaforidos, chegaram uns bons minutos atrasados e foram logo sumariamente interrogados: todos tinham saído para uns terrenos que havia junto à Escola para andarem, numa enorme lufa-lufa, a brincar aos … descobrimentos.

 

Imagino com que alegria interior o Senhor Amadeu lhes ralhou “severamente” a fingir com muita dificuldade que estava muito zangado com eles.

 

Já agora, recordo uma outra história que ele próprio contava, em que entra a sua dedicada bicicleta para ilustrar o que eram palavras homófonas.

É altura de dizer que o professor Amadeu Santos era natural da Freguesia de Eixo, em Aveiro, onde praticamente toda a gente tinha, e ainda hoje deve ter, uma bicicleta.

 

Era assim:

 

Amadeu Santos passeava-se com um amigo pela sua terra e ia descrevendo as qualidades da sua bicicleta bem como algumas peripécias de algumas viagens que nela tinha feito. O tal amigo, em dada altura, perguntou-lhe:

 

_ Não houve um conserto?

 

_ Uns furos e nada mais _ respondeu Amadeu Santos.

 

Depois deste curto esclarecimento, prosseguiu na infinda narração das tropelias que havia feito com a sua tão amada e fiel companheira de duas rodas.

Mais uns passos andados, e lá voltou o outro:

 

_ Não houve um conserto? 

 

_ Não senhor. Que me lembre, houve, quando muito, uma meia dúzia de furos.   

 

O outro, vendo que Amadeu Santos estava mais que absorto com a história que lhe ia contando, pára e fá-lo parar, agarrando-o pelo braço, e, com o ouvido no ar, pergunta-lhe outra vez, agora em tom mais alto e bem de frente para ele:

 

_ Não ouve um concerto?

 

Uma banda tocava, lá longe, muito para além dos extensos campos todos muito bem cultivados, certamente a animar uma romaria em honra dum santo padroeiro qualquer.  Havia, de facto, um concerto!

 

Esta história, penso eu cá para mim, devia ser invenção sua, mas quem por ele a ouviu contar nunca mais se esqueceu do que eram palavras homófonas e passou a ter, com estas e com outras artimanhas suas, muito mais cuidado com a escrita.

 

Só quero contar mais uma historinha para que possam melhor apreciar as diferenças entre aqueles remotos tempos e os que hoje vivemos.

 

Alguns dias antes, não me lembro bem quantos, de irmos, de casaco e gravata, fazer o exame da quarta classe a Vila Nova de Gaia, sede do Concelho, o Professor Amadeu recebia-nos na escola, (era ali onde vivia, com acesso directo para a sala onde dava aulas), depois do jantar para nos dar os últimos conselhos e fazer umas revisões.

 

Estou a vê-lo à nossa espera no corredor que dava acesso à sua sala. A mim e a outros que foram dos últimos a chegar, disse em seco tom de ralhete:

“Vamos daí. Em tempo de guerra não se limpam armas”.

 

Por aqui se pode apreciar a santa Paz que hoje se vive nas nossas escolas!    

 

 

 

***

 

 

O professor Amadeu Santos teve direito a nome de rua em Valadares. Poucos hoje saberão quem ele na realidade foi e o valioso papel que para a sua terra adoptiva representou.  Muitos continuam a tratar essa rua pelo seu antigo nome: Rua da Estação.

 

Não sei se os Professores Manuel Pires Veloso e Aquino de Sousa também tal merecida honra tiveram. Fica para alguns a memória de todos, até que um dia se acabe a memória de quem não mais os pode esquecer.    

 

 

 

21 de Março de 2009

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