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A loja do Senhor Serafim

O senhor Serafim tem uma lojinha onde aparentemente pouca coisa se vende,

mas como tem um livro muito esguio e de capa dura onde faz os seus assentos, ou,

dito de outra maneira: como o senhor Serafim também vende fiado,

esta atraente e bem badalada particularidade, nesta altura, em que quase todos

andam tesos em cima da corda bamba, tudo leva a crer que o senhor Serafim

lá se vai safando, e até muito bem!

 

A lojinha, no seu departamento de mercearia, aparentemente sempre às moscas,

pouca coisa tem para vender, mas, a seu lado, com comunicação pelo interior, está,

numa área sombria mas mais que acolhedora, o departamento onde ele vende uns

copos a vários tipos de clientes assim caracterizados:

 

*ocasionais passantes conhecedores do esconderijo,  

*gente de bom faro que já muito ao longe detectou o atraente cheiro

 da pinga e, finalmente,

*um fiel grupo estacionário de meia dúzia de sedentos inveterados que,

desde manhãzinha até ao fim do dia, nunca lhe desampara a loja.

Umas vezes, estes estão bem lá dentro a emborcar o "tintol",

outras a passar o tempo cá fora, no passeio bem junto à porta,

não vão as pipas fugir.

 

Quando no exterior, estes últimos contam e recontam frequentemente os trocos

que lhes vão restando enquanto preparam lastro para uma nova investida “copofónica”.  

 

Para o exterior, o departamento de mercearia tem a sua própria porta,

esta assinalada por uma garrafa de gás butano que todo o santo dia ali jaz

muito bem acorrentada, não vá o diabo tecê-las.

O referido tasco, (sem qualquer desprimor assim o designo),

também tem uma porta privativa donde emana o irresistível cheirinho

a tintol que a todos perturba, incluindo qualquer fervoroso abstémio que por ali passe

e dali foge a sete pés, com uma assustadora máscara de gente enjoada

muito bem estampada na cara.   

 

A loja do senhor Serafim está situada numa esquina e tem duas montras,

outrora duas boas janelas duma saudosa casa apalaçada,

(hoje caiada por fora mas toda ela decadente), que a alberga;

uma está virada para a longa rua que leva até à praia, a outra voltada para

o largo onde desemboca a rua onde eu moro e que vai dar à

estação de caminho-de-ferro.

A estação, também tem à entrada uma loja onde se servem umas coisinhas

ligeiras para mastigar, uns “drinks” bastante “soft” para dessedentar e,

vejam lá, bilhetes para os comboios que vêm chegando,

se não houver greve, Deus nos oiça e perdoe aquela gente.

 

Nas montras há todo o tipo de bugigangas que o senhor Serafim oportunamente

actualiza, usando bonecada de Barcelos e vários utensílios alusivos a cada época

 que vai passando.

Aí também  afixa vários tipos de novidades, tais como excursões à

Nossa Senhora da Saúde nos Carvalhos,  à Santa Maria Adelaide em Arcozelo,

espectáculos de fadistas e cantadores rascas e, principalmente, os lúgubres

comunicados dos últimos falecimentos de gente conhecida na terra.

 

Por exemplo, estamos agora em Junho, mês dos santos populares.

Todos coloridos, estão lá carneirinhos, vaquinhas, martelinhos, etc., etc., e, claro,

os próprios santinhos em pessoa, todos eles muito bem vestidos e aprimorados.

Por dentro, colados nos vidros, há vários anúncios com letras maiúsculas,

rabiscadas à mão mas bem legíveis, a dizerem assim:

“VENDE-SE BALÕES DE IR AO AR”.

 

Só para que possa ser avaliada a capacidade de marketing do proprietário/gestor da loja,

no mês passado, um similar anúncio proclamava:

“HÁ GRILOS CANTADORES”. 

 

De manhã, bastante antes de soar a hora de se poder começar oficialmente a

matar o bicho, o senhor Serafim retira as portadas metálicas de protecção das montras,

coloca-as cá fora, muito bem deitadinhas no chão e encostadas às paredes,

mesmo por baixo das montras que durante a noite por elas foram protegidas

dessa gatunagem rasteira que por aí anda, para, mais tarde, na hora do fecho,

voltar a vir repô-las no seu lugar protector.

 

E assim se acaba o dia comercial.

O senhor Serafim, acabado de fechar o seu complexo, vai para casa dormir-se,

levando para a cama o seu livro de cabeceira favorito de que ele, aliás, é autor:

o Livro dos Assentos.

Depois de o folhear, e tendo saltado as páginas dos raros clientes mais fiáveis,

enfia-o por baixo da almofada onde, até ao dia seguinte, vai repousar a sua atordoada cabeça.   

 

Alguém no seu inteiro juízo pensa que o senhor Serafim, alguma vez na sua vida

há-de vir a embarcar naquela de ter de comprar uma maquineta, que, aliás, ele nunca

ia conseguir saber manobrar, só para não poder fugir à merda do IVA?

Toda a gente com um pouquinhoo de miolo no caco sabe que, a tal acontecer,

logo se calavam os grilos e, em vez dos balões, lá se ia o negócio ao ar.

 

 

 

*** Já lá entrei, umas duas ou três vezes, mas apenas na "zona comercial" do estabelecimento. De todas as vezes, apenas comprei inocentes e lindos bonequitos de Barcelos.

Há por aí alguém que queira vir comigo passar um bocadinho de tempo a taramelar sobre nada e a beber uns copitos sobretudo?

 

 

 

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