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Subtilezas

 

 

Creio não ser possível saber ao certo quantos casais se guerreiam dentro de casa, no chamado espaço conjugal, onde os consortes, (tudo pegado), não se conjugam em muitas das formas, tal como acontece na nossa gramática com o raio dos verbos chamados defectivos.    

 

No ano de 2007, foram denunciados e registados pela Associação Portuguesa de Apoio à Vitima (APAV) 14534 crimes de violência doméstica, tendo cerca de 9,9 por cento sido praticados pela mulher, o que, feitas as contas, significa que 1439 homens menos umas centésimas, se não considerarmos os eventuais casos de poligamia, tiveram a coragem de lá ir fazer queixinhas e de se dizerem agredidos pelas respectivas 1439 consortes mais umas centésimas, teoricamente consideradas muscularmente mais fracas. Isto, se não levarmos em conta que a língua, quando é má, é um poderoso músculo no feminino e no “nem uma coisa nem outra”.  

 

Toda a gente está mais que segura que a esmagadora maioria dos casos não é denunciada, quer porque os agressores não são demasiado parvos para se darem a esse descuido, quer porque os agredidos, sempre numa situação de inferioridade e medo, quando não pavor, por nada deste mundo o ousam fazer. Calam, consentem, e acabam mesmo por achar que as coisas têm mesmo de ser assim, “cala-te boca se não queres levar mais”.

 

Ao ser perguntado se batia na sua companheira, já eu ouvi um macho televisionado, que pela fala era lá de cima, a dizer, todo sorridente e pimpão, que lhe zupava “porquelas às bezes preciso”. (sic). Elas, aqui, significa todas as mulheres em geral e não apenas a sua em particular.

 

“Dar um empurrão ou um estalo são actos relativizados. É uma espécie de violência aceitável, desde que não seja sistemática e faz parte da vida a dois”, sentenciam alguns machões. Esta afirmação bastante surpreendeu uma investigadora que prepara a sua tese de doutoramento, mas nada surpreendeu a mim que, embora possua um nadinha de investigador, não tenho a menor apetência para me doutorar no que quer que seja, não apenas porque já é tarde, mas porque a coisa se tornou demasiado vulgar para o meu feitio.

 

Não me surpreendeu porque sou bondoso e julgo que, se este tipo de violência for sistemático, ele vai produzir habituação, o que tende a imunizar a vítima, fazendo-a aceitar com um sorriso nos lábios as sovas que lhe vão caindo regularmente em cima.

 

Já que se bate, que se bata sistematicamente, se possível a horas certas, por exemplo, às seis da tarde, para que a vítima apanhe, naturalmente e sem estranheza, a esperada bofetada ou o empurrão de cada dia. Chegar-se-à ao ponto de ser a própria vítima, toda ternurenta e dengosa, a ir lembrar ao membro agressor do duo “Ó filho, hoje esqueceste-te, olha que já são 7 horas e ainda não me deste os tabefes nem me empurraste contra o armário da sala!”.

 

Feita a horas, a habituação à violência não só a torna aceitável como também desejável.

Se, além de a horas, for também fora de tempo, embora igualmente se crie uma certa habituação, já a violência entra num campo pouco aceitável, para acabar no inaceitável, quando a vítima leva por tudo e por nada, bastando-lhe apenas estar a jeito e ali à mão.       

 

É conhecido aquele lamento duma senhora que começou a suspeitar que o marido devia andar envolvido com outra porque, de há uns tempos para cá, ele tinha deixado de lhe dar uma valente trolha sempre que o seu glorioso clube perdia, ele que até aí, mesmo quando o resultado era um empate, não lhas poupava e a enchia de negras que só desapareciam depois de muito Hyrudoid espalhado e o clube ter regressado sustentadamente às vitórias.

 

Não conheço, mas admito bem que possam existir, casos em que se passe o contrário, isto é, situações em que quem bate é a mulher perdida, melhor dizendo, a mulher cujo clube perdeu e por isso é ela quem descasca no manso marido que ficou em casa a tratar da roupa e do jantar, enquanto ela foi sozinha ver o jogo, de cachecol e com um chapéu cheio de cornos enfiado na cabeça, tudo a dizer de modo berrante com as cores do seu clube.     

  

Alto e bom som, muitos machos vangloriam-se da sua “masculinidade” na praça pública, junto dos amigos de copos, muito antes de começarem a ficar muito bem enfrascados. Não é a primeira vez que a esses heróis a fanfarronice se acaba mesmo ali à entrada da porta de casa, com a chave perdida ou sem a conseguirem enfiar na fechadura, com a mulher a abrir-lha e a arrastá-lo para dentro, para aí, com ou sem um objecto estranho, como o tão mal afamado rolo da massa, aproveitar a maré vaza para lhes descascar forte e feio, com insultos recalcados, aproveitando, com muito oportuna e louvável cobardia, aquele período mais ou menos longo que dura a obtusidade duma besta toldada.

 

Quando se fala em violência doméstica, logo todos pensam que o mau da fita é o homem, raramente lhes vindo à cabeça o protagonismo da mulher. Admite-se, na melhor das hipóteses, que se digladiam desportivamente, usando o mesmo tipo de armas consideradas limpas, como o murro, o sopapo, o tabefe e o pontapé, com um cheirinho de insultos picantes e muito pegajosos espalhados pelo meio.

 

Salvo muito raras excepções, o homem, por ser mais rijo e musculado, vence a peleja, quase nunca se livrando de ficar todo riscado por unhas fortes e penetrantes e  com marcas profundas deixadas pelas mordidelas raivosas do inimigo, o que, por longo tempo, o vai impedir de, pelo menos, andar em troco nu ou de mangas arregaçadas.

 

No caso de a agressão ser apenas verbal, onde não há sopapo e o insulto e a ofensa imperam, há um desequilíbrio a favor de uma das partes, pois, aqui, a vantagem, vai para o lado da fêmea que, nesta forma de luta, usa a sua bem musculada língua para catapultar munições terrivelmente explosivas e demolidoras, armazenadas no seu bem fornecido arsenal de impropérios altamente corantes.

 

A agressão feminina é normalmente feita de forma altamente gritada, o que faz alertar a gente das cercanias, sem necessidade de alguém aí circunscrito ter de pôr uma mão em funil na orelha ou de encostar esta na parede. Mesmo os mais tapados de ouvido não necessitam de qualquer ajuda amplificadora, tal é a curiosidade coscuvilheira entranhada que faz com que a sua sensibilidade auditiva seja reposta e lhes afaste temporariamente a usual surdez.  

 

Diz-se ainda nesse artigo que a violência conjugal praticada pela mulher é mais subtil, e que quase nunca deixa marcas visíveis. Disto se depreende sem o menor esforço que tal subtileza deixa marcas invisíveis, não detectáveis, nem localizáveis, onde não é possível pôr pensos, adesivos, talas, ligaduras, nem umas simples pinceladas da comprometedora Bétadine.

 

No caso da violência no feminino, as más da fita são, regra geral, senhoras escolarizadas e de classes altas, cujo respeitável marido tem um estatuto bastante mais elevado do que aquele vulgar macho rasteiro que sova a sua companheira por ofício, por dá cá aquela palha, ou porque a sopa está demasiado quente, ou porque as cerejas têm bicho, ou, sei lá, porque o arroz lhe cheira a esturro.  

 

A tal escolaridade permite-lhes imaginar e recorrer a métodos algo sofisticados que nunca podem passar pelas cabeças das outras fêmeas, cuja escolaridade se ficou pelos testes das cruzinhas feitas pelo cheiro, por palpite, por puro totoloto e pela rebaldaria do “minha gente, não se chateiem que, no fim do ano, estamos todos passados”.  

 

Vejamos alguns exemplos elucidativos da subtileza desses eficientes métodos.  

 

O marido ao sair de casa, já muito junto à porta, inclina a cara aparentemente serena para um amoroso beijinho com um “até logo querido não venha muito tarde para fazer companhia à sua mulherzinha”. Ela mesmo empurra a porta suavemente, já com as saudades prefabricadas a amortecerem-lhe o bater, e o marido sai com ar muito respeitável e compenetrado para a conferência que vai fazer sobre o grave problema do Dafur e da sua repercussão na crise internacional do petróleo.

 

Pouco passa das 10:30 e a conferência está marcada para as 11:00. O eficiente laxante que ela, muito à socapa, lhe pôs no café com leite começa agora a fazer o seu efeito e o conferencista, por descargo de consistência intestinal, mete-se, em passo quase de corrida, no atraente e todo automatizado WC ali existente.  

 

O tempo voa, o cavalheiro continua sentado, as cólicas não passam e, “valha-me Deus, tenho que ir, já são 10:55!” O enorme rolo de papel de quatro folhas chegara ao fim, bem como o suplente que esteve ao lado, mas, apesar da premência das cólicas, há mesmo que correr riscos de eventuais derrames e ir a horas certas para a programada conferência.   

 

O conferencista, como é seu timbre, apesar dos inesperados problemas intestinais surgidos, entra pontualmente no “Conference Room” e começa de imediato a falar sobre a questão do Dafur. Cinco minutos depois, às 11:05 muito certinhas, uma cólica mais forte que todas começa vorazmente a mortificá-lo.

 

Não se enrasca, embora muito à rasca esteja há muito tempo. Com um grande sorriso muito bem esticado na boca, para poder airosamente se safar dali e voltar a correr para um WC, anuncia, com um falso júbilo muito bem estampado no rosto, que mesmo agora tinha sido informado do aparecimento de uma imensurável jazida de petróleo no Dafur, o que tirava todo o sentido à conferência que havia preparado.

 

Com um muito obrigado pela vossa presença, sai da sala aplaudidíssimo, no meio de vibrantes palmas e efusivos vivas ao Dafur e, com vénias muito curvadas, mais provocadas pelas violentas cólicas do que pelos aplausos, atira-se para o primeiro WC que enxerga, por acaso, aquele mesmo que há minutos tinha utilizado e que ainda estava sem ponta de papel.

 

Outro exemplo subtil, de efeito também “retard”, consiste em dissolver na chávena do cafezinho depois do jantar dois potentes comprimidos azuis que, passado uma hora, o fazem sair disparado do sofá, sem sequer acabar de ver a “Quadratura do Círculo”, e ir a correr para a cama onde a mulher o espera a simular que ressona pesadamente, enquanto espreita, pelo canto do olho semi-enterrado na travesseira, e o vê todo nu, com as peúgas por descalçar, pronto a saltar da prancha. Desolado, para refrear os impulsos e satisfazer artificialmente os sentidos, fecha-se na cozinha e, em cima da tábua da mesma, começa a partir, com um som bastante abafado, todas as nozes e avelãs de casca dura que pôde encontrar na despensa.      

 

Outros estratagemas, não tão subtis, mas muito eficientes e que exigem alguma formação académica, são mencionados pela referida doutoranda:  

 

·  a. mudar a fechadura da porta, para que nela o marido bata com o nariz e fique humilhado na rua.

·  b. dizer mal da sogra na presença dele e de estranhos.

·  c. fazer comentários injuriosos à sua pessoa, para o pôr de rastos a morder o chão na presença dos amigos.

·  d. inverter os papeis, e começar a espernear-se histericamente aos berros, num choro pegado a dizer que  não merece a maneira com ele a trata, etc., etc.  

 

Sejam os métodos subtis, ou nem tanto assim, estas ronhosas “vítimas” aproveitam-se da fama de pertencerem ao sexo mais fraco para terem o proveito de violentar o mais forte, criando o descrédito e o desprezo daquele ser abjecto que não sabe respeitar uma senhora, sendo ela, para além de sua esposa, uma pessoa culta e mãe dos seus filhos.

 

Alto e bom som, muitos machos, como aquele que atrás foi referido, vangloriam-se dessa sua masculinidade junto dos amigos de copos enquanto petiscam uns salgadinhos, muito antes de começarem a ficar toldados. Não é a primeira vez que a esses heróis, que chegam dificilmente a casa com a chave perdida ou sem conseguirem acertar com ela na fechadura, a fanfarronice se acaba, com a mulher a arrastá-lo para dentro de casa.

 

Aí, livre dos olhares alheios, com ou sem um instrumento de percussão improvisado, como o tão mal afamado rolo da massa, aproveita a maré vaza para lhes descascar forte e feio, com insultos altamente corantes, aproveitando com oportuna e muito louvável cobardia, o período, mais ou menos longo, de obtusidade daquele besta toldada que jaz, praticamente inanimada, a seus pés.

 

Antes que apanhe uma sova, vou-me ficar por aqui.

 

 

 

 

 ***

De  um artigo saído no PÚBLICO de 21 de Abril de 2008 intitulado:

 

Mais homens assumem-se como vítimas”

 

 com o subtítulo:

 

“As mulheres recusam assumir papel de agressoras, mas confirmam a prática de chantagem, manipulação e injúrias. Estudo tem por base entrevistas a homens e mulheres de classes altas.”

 

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