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Totó, não me leve a mal

 

Tive um professor no Liceu, o abençoado e saudoso Totó, que coçava e limpava a cera dos pavilhões auriculares com o bico rombudo e lustroso do coto dum lápis Viarco já muito pequenino que sempre trazia no fundo do bolso superior ornamental daquele seu casaco quatro estações, o qual, quer fizesse frio ou calor, sempre o vi envergar.

 

Dada a pequenez do utensílio, não lhe era nada fácil sacá-lo lá do fundo do bolso onde ele se deitava na horizontal, a posição estável que, seguindo religiosamente as leis elementares da velha física, ele sempre acabava por ter de adoptar.  

 

Para mais complicar, o Totó era de mão pequena, gorda e dedo curto, o que o fazia perder gostoso tempo para o conseguir pescar a fim de proceder à periódica e frequente tarefa de fazer a manutenção dos pavilhões.

 

O Totó devia deleitar-se com aquele longo ritual da pesca ao lápis, tal como sucede com os fumadores mais viciados, que fumam cigarrinhos por si confeccionados com tabaco de onça e mortalha de lamber. Estes têm tanto ou mais prazer em fazer o cigarrinho do que fumá-lo, antes de o esganarem até à última gota de alcatrão, no ponto em que começam a sentir ficar um tanto quentes as pontas amarelo-torrado do seu indicador e polegar duma das mãos. “Mutatis mutandis”, assim devia suceder ao Totó.

 

O Totó era ou parecia, pelo menos no fim da sua carreira docente em que o conheci, bastante surdo e punha a mão em concha na orelha quando queria ouvir, ainda que mesmo assim mal, o que se passava à sua frente.

 

Não sei ao certo se era surdo, surdo, se não lavava bem (nem mal?) os ouvidos ou se, com a improvisada cotonete, em vez de retirar a cera a empurrava para o interior dos pavilhões, bloqueando os tímpanos e impedindo-os de vibrar.

 

Não se ficavam por aqui as complicações que o Totó arranjava para se higienizar oticamente (opticamente é outra coisa que eu ainda não sei como o proposto novo acordo ortográfico se desenrascou para nos enrascar).

 

O Totó ajeitava-se na sua cátedra, pescava o lápis e debruçava-se na secretária, algo que me fazia lembrar o que os gatos fazem quando se lavam e penteiam com a sua língua áspera e bem salivada.  

 

Seria de esperar que o Totó, por muito dextro que fosse, para limpar o auricular direito agarrasse o lápis na mão direita e que, para fazer o mesmo no auricular esquerdo, mudasse o lápis para a outra mão.

 

Mas não! O Totó complicava e limpava o lado esquerdo, não só com a mesma mão, a direita, e, em vez de a passar pela frente da cara, ia com ela pelas traseiras.

 

Agora, muito debruçado para a esquerda da secretária, fazia a limpeza todo torcido de braços, com a cara bem desobstruída, o que nos permitia vê-lo em êxtase, de olhos suavemente fechados, como se estivesse a masturbar-se surdamente pelos ouvidos.

 

 

 

*** Totó era o cognome da excelente pessoa que era o saudoso dr. António Oliveira, meu professor de francês no Liceu de Alexandre Herculano.

 

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