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Tr'amar o próximo

 

Pus-me cá a pensar que já na escola primária eu tinha uma certa queda para lixar sub-repticiamente os parceiros, na mira de cair nas boas graças dos ingénuos ou pouco atentos professores e daí tirar os meus proveitos.

 

Alistei-me, logo que pude na Mocidade Portuguesa e, já então, o meu faro político me aconselhava a não usar farda, fosse ela a dum simples lusito ou mesmo a dum importante chefe de castelo.

 

Assim, sempre à paisana, durante os anos da instrução primária, já eu praticava umas boas pulhices de primeiro grau e ia enterrando, mais ou menos até o pescoço, toda a cambada que pudesse fazer-me sombra ou perturbar a minha ascensão.

 

Fiz a Primária com distinção, (todos ficavam distintos), e depois de fazer o maldito exame de admissão, entrei no Liceu, onde prossegui, sempre desfardado, a minha carreira, torpedeando e sacaneando este e mais aquele, para tirar o máximo de dividendos que me permitissem completar, embora com alguma dificuldade, o curso geral dos liceus.

 

Não fui aluno brilhante, talvez porque não tenha sido suficientemente patife, mas, “mea culpa, mea culpa”, eu não estudava puto, não me ajeitava nada a copiar e muito menos a escrever a minúscula tirinha para o copianço. Além disso, não me entendia com todas aquelas disciplinas muito ranhosas de interesse para mim muito duvidoso.

 

Foi aí pelo quinto ano de então que comecei a trabalhar à peça para a PVDE, a futura PIDE/DGS, o que, mais peça menos peça, me foi ajudando a levar uma vida relativamente jeitosa que fazia roer de inveja os meus colegas de turma e das turmas adjacentes.

 

Um senhor da Secretaria do Liceu que usava manguitos cinzentos até aos cotovelos e também trabalhava para fora, sabendo da minha vocação, num abençoado dia contactou-me para sondar se eu queria integrar os quadros auxiliares daquela prestigiada instituição e, claro, eu aceitei, não só porque queria aceitar, mas também para não dizer que não, não fosse tomarem-me de ponta e tratarem de me lixar.  

 

Comecei, então, a fazer uma intensa vida de café, sem nunca rodar a cabeça nem agitar as orelhas, sempre com o olho no meu jornal e o ouvido atento a perscrutar as mesas à volta, num raio de aproximadamente dois metros.

 

O meu vencimento era razoável, mas, com a prática que fui adquirindo, foi aumentando substancialmente sem grande esforço porque, graças a Deus, a caça por ali era abundante e andava a pastar-se muito desprevenida.

 

Muitas peças foram abatidas à minha custa, mas nisto de abater peças lavo as minhas mãos, porque tão longe não chegavam as minhas básicas competências.

 

Quando cheguei ao sétimo ano, já tinha um palmarés invejável e uma folha secreta muito digna de ser vista, mas a que ninguém de fora nem a uns tantos de dentro era permitido nem sequer de longe cheirar.  

 

Terminei esse ano o curso geral dos liceus, que fiz um tanto atabalhoadamente porque o tempo não dava para tudo e, como já disse, eu não era muito de marrar e odiava todos os livros, mesmo aqueles muito fininhos que tratavam de moral e educação cívica.

 

Assim terminou, a minha fase das pulhices de segundo grau.

 

Fiquei-me pelo Curso Liceal, sem saber nada de nada, mas, ao mesmo tempo, a sabê-la toda. Ainda hoje, graças à Nossa Senhora de Fátima e aos pastorinhos, não tenho de que me arrepender.

 

A Família, que ignorava os meus afazeres extra-escolares, é que não gostou muito da minha decisão porque queria, numa ambição muito compreensível, que eu tirasse um curso e fosse doutor. Ter um doutor na família era o grande sonho dos meus pais e das minhas duas tias que eram solteiras.

 

Lá se acabaram por conformar, até porque me viam levar uma vida flauteada, nunca eles souberam como, que me permitia dar-lhes umas ajudinhas preciosas para o seu limitado orçamento caseiro que, não fora isso, teria um acentuado défice.   

 

Por falar em família, ocorre-me agora, com muita saudade aliás, lembrar a memória de um tio meu, irmão direito da minha Mãe, que gostava muito de mim e todos os meses me dava uma moeda de dez escudos a brilhar de novinha, como se tivesse acabado de ser cunhada.

 

Uma dia, numa conversa parva, deixei-me escorregar e abri de mais a boca o que fez com que, por minha causa, esse meu tio estivesse engavetado uns anos, onde apanhou umas bons sopapos e provou de tudo o que havia na lista das carícias daquela patriótica instituição.

 

O meu tio era o que se chama um homem teso, um teso em todos os aspectos. Apesar de muitas vezes terem tentado, desistiram de lhe fazer a tortura do sono, porque ele tinha o defeito, se a isso se pode chamar defeito, de ser um dorminhoco nato que ferrava o galho a toda a hora e que, quando lhe chegava o sono a sério, conseguia dormir em qualquer sítio e em qualquer posição, mesmo a de pé quando se lembravam de o pôr a fazer a estátua. Fosse ele ainda vivo, coitado, estaria para saber quem tanto contribuiu para lhe abrirem lá uma ficha tão completa e fiável.

Deus me perdoe e o tenha para sempre no Céu, mas, francamente, ele também nunca teve o mínimo tento com aquela sua descuidada língua!

 

Até fazer a tropa, fui-me ocupando com esta biscatada, levando uma vida muito regrada e limpinha, com entrada grátis em praticamente todos os sítios, e sem fazer quaisquer esforços, muito pelo contrário. Café, cinema, cinema, café, ouve aqui, sopra acolá, recordo com saudade esses belos tempos, inteiramente dedicados a Deus, à Pátria e à Família.

 

Na tropa entrei logo para amanuense e não fui para o ultramar porque havia cá falta de gente e muito que fazer. Serviço para mim nunca faltou, dentro e fora do quartel. Seria preciso ser-se muito surdo e um cego total, para não arranjar cá fora uns ganchos, sentado numa cadeira, a ver jogar no bilhar grande ou a apanhar dicas nos átrios e urinóis dos teatros e dos cinemas.

 

Gostei muito de andar na tropa porque lá também não se fazia nada e todos passavam o dia distraídos com a batota, a beber copos e a badalar constantemente.

Como no badalar é que estava o meu ganho, para que todos badalassem o mais possível, eu animava a batota, enchia os copos e puxava a corda quanto podia para que todos badalassem o mais possível.  

 

Este período da tropa é o que eu chamo a minha fase de pulhice de terceiro grau.

 

Para quem não lida com estas coisas, esclareço que, segundo as normas internacionais, os graus de sacanice vão de um a cinco, havendo um grau de cariz meramente honorífico, chamado o cinco super que, embora dê muito prestígio, não rende a ponta dum chifre.  

 

Acabada a tropa, colaborei muito com senhoras da Conferência de S. Vicente de Paulo na sua tão bela e abnegada obra humanitária.

 

Estas venerandas senhoras passavam todo o seu santo dia a dar à língua, não tanto como acontecia no quartel, mas com a vantagem de falarem de tudo e de todos até ao ínfimo pormenor, e eu lá ia apanhando umas deixas que muito úteis me foram para a actualização permanente dos meus ficheiros. Mas, além de darem à língua entre si, também puxavam muito pela língua dos pobres necessitados, e era aqui, com tantas queixas e reclamações ouvidas, que eu fazia uma valiosa e farta recolha de dados.

 

Embora nunca tivesse deixado de lhes prestar a minha interessada colaboração, decidi nessa altura da vida arranjar um emprego a tempo inteiro, para arranjar umas massas que caíssem certas, sem ter que fazer muito nem ter muita canseiras.

 

Eu tinha um senhor muito meu amigo que era da União Nacional e um grande benemérito da terra, o que o fez chegar a comendador não sei de quê. Possuía umas quantas fabriquetas de botões metálicos e fivelas também metálicas e era o fornecedor único dos três ramos das nossas Forças Armadas, onde tinha conhecimentos de gente de muito peso.

 

Botão a botão, fivela a fivela, fez uma fortuna descomunal que lhe permitia desbaratar umas coroas a dar esmolas pelas ruas e a ajudar alguma pobreza escondida, mandando, todos os domingos, à hora do almoço, levar-lhes a casa uma boa sopa com um apreciável bocado de conduto.

 

Não desfazendo, aquele meu amigo era uma santa pessoa. Encaixou-me na sua organização como Director Geral dos Recursos Humanos, o que me levava a visitar todas as suas fábricas, uns dias nesta, outros naquela, conforme as necessidades. Num enorme esforço meu, na altura ainda não havia computadores, fiz uma pormenorizada ficha de todo o pessoal.

 

Passei a ter um gabinete em cada sítio, com telefone privativo directamente ligado à outra firma para quem desde o Liceu trabalhava como “freelance", na Rua do Heroísmo, no Porto, mesmo junto ao Cemitério do Prado do Repouso.    

 

Aqui terminaram as minhas pulhices de quarto grau.

 

Depois, veio o tão por mim desejado dia vinte e cinco de Abril de 1974 e logo no dia vinte e seis à tarde fiz, por minha conta, uma festa de arromba no Salão de Festas dos Bombeiros Voluntários. Aí apareceram, todos por mim convidados, muitos tipos barbudos que tinham estado engavetados sob o meu patrocínio e de quem sempre fui um grande e dedicado amigo. Eram todos gente intelectual, evidentemente, de esquerda, como eu, e daí se terem estreitado ainda mais os laços que sempre nos uniram.

 

Saneámos a torto e direito muito fascista, fizemos inúmeras ocupações, a que os mais reaccionários chamavam selvagens, criámos creches, fizemos jardins de infância, montámos lares para a terceira idade, eu sei lá, e conseguimos limpar a sociedade decadente de uma série de parasitas que só exploravam o Povo Trabalhador e as classes mais desfavorecidas.

 

Esta foi a fase áurea da minha vida que me levou rapidamente a atingir o ambicionado quinto grau, onde, quero ficar finalmente estabilizado. Estou no topo da carreira, sou um pulha de quinto grau!

 

Agora, já sou mesmo doutor para toda a gente, deixei-me cá de botões e de fivelas, e desde 1976 só me dedico à política.

 

De todos os lados não param de me pedir para ser Ministro, até Primeiro me ofereceram ser, mas eu, muito francamente, também não me quero rebaixar a esse ponto! 

 

O meu tempo passou e acabei por atingir o quinto grau. Basta! Não sou ambicioso, e por aqui espero ficar enquanto tiver vida e saúde.

 

 

 

***

     Eu antes e também eu, mas depois.

 

 

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