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Títulos em alta

 

Fica um aviso: nem pensem que venho falar de dinheiro e, muito menos, de coisas que cheirem ao comportamento da Bolsa. Embora não meta dinheiro, o que venho dizer pode relacionar-se, até certo ponto, com o modo de o angariar. Também é assunto sério, como vão ver.

O velho e arreigado hábito português, resquícios do analfabetismo e da subserviência medievais, que ainda não nos abandonou nem tão cedo nos irá abandonar, de as pessoas se tratarem pelos encanudados títulos profissionais incomoda-me solenemente.

Agora, com esta "cogumélica" proliferação de cursos, de tudo, por tudo e para tudo, o endoutoramento das gentes começa a vulgarizar-se tanto e tão velozmente que eu tenho séria reservas que os povos, onde tal costume só em casos muito particulares existe, nos levem mesmo a sério.

 

Um amigo meu, dos raros a quem também estas coisas arrepiam, tem, como toda a gente que respira, uma infinidade de cartões e, entre estes, os de débito e os de crédito. Ele que se chama António Moreno Montes há sessenta e muitos anos, feitos em Fevereiro, e é engenheiro civil há mais de quarenta, feitos em Julho, pagou em Espanha, ainda no tempo da velha peseta, não importa citar o quê, com o seu cartão de crédito.
 

A gentil "señorita" que o atendeu, depois de lhe pedir o BI e o cartão que passou pela máquina, enquanto se aguardava que se fizesse a ligação, trrc trrc trrc trrc, diz-lhe sorridente: "Qué nombre tan raro!"
 

Já cá fora, esse meu amigo comenta para a mulher: "Safa, estes espanhóis, para línguas, são mesmo duros! Se, aqui, António é António, Moreno é Moreno e Montes é Montez, não me digas que, por causa de um S em vez dum Z, o meu nome é assim uma coisa tão rara!".

 

Passados uns dias, quando, já em Portugal, esse meu amigo pagava, com o mesmíssimo cartão, uma outra coisa qualquer, a moça, também simpática mas que era portuguesa, que ele nunca vira nem mais magra nem mais gorda, e até devia ter aquele peso há muito, dá uma olhada pelo cartão, como fizera a tal señorita, (não lhe pediu, como devia, o BI, porque os portugueses ficam sempre muito ofendidos na sua honra) e entrega-lhe o papelinho e o cartão com um "muito obrigada, senhor engenheiro". Iluminou-se, nesta altura, o espírito desse meu amigo que logo, ansioso, foi ler o cartão. De imediato, corrigiu o julgamento que fizera sobre a excessiva dureza de ouvido dos espanhóis para línguas.

A "señorita", que viu no cartão Eng. António Moreno Montes, não sabia que, em Portugal, podia haver um nome assim arrevesado, a cheirar a sueco por todos os poros (em alemão, "eng" quer dizer apertado, estreito, etc., e pôr o nome de Eng a uma pessoa creio que não passa pela cabeça de nenhum alemão, minimamente educado e no seu inteiro juízo).

Os leitores que vêem debates nas nossas televisões, reparam que os intervenientes se tratam, ao despique, por senhor doutor para cá, senhor engenheiro para lá, senhor professor para baixo, senhor arquitecto para cima, etc. etc.

 

Mas, para engrossar a cena, o/a moderador/a de serviço, que está sempre, mesmo quando não devia, a meter a colherada, sem saber que também há colheres de chá, em dada altura da conversa, anima-se, abusa da confiança e tira os nomes a toda a gente e passa a usar apenas a etiqueta de cada um dos seus entrevistados. " Doutor, até que ponto a maré negra…"; "Engenheiro, qual foi o facto da semana que…"; Professor, que pensa do caso da …"; General, acha que o urânio empobrecido …".

Embora isto tudo, aparentemente, nada tenha a ver com a evolução da Bolsa, nem com o défice orçamental, nem com toda a bandalheira que anda por aí à rédea solta, não acham que estas e outras coisas inocentes são também motivos para nos deixarem um tanto preocupados?

 

 

 

 

***  a cena do Eng com a "señorita" passou-se comigo, no País aqui ao lado, em

     Valência de Alcântara.

 

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