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Um Domingo Passado ao Sábado

 

Aqui há muitos anos, muitos anos mesmo, o António, além de solteiro, também era muito bom rapaz. Hoje, apesar de não ser solteiro, porque teve a dita de se ter casado com a Gina, já lá vão cinquenta anos certinhos, o António continua a ser o mesmo bom rapaz, tal qual como quando era em solteiro e mal conhecia a Gina; francamente, não sei dizer se ele com ela sonhava, e o vice-versa também ignoro, mas hei-de–lhes perguntar.


A Gina, por sua vez, antes de se casar com o António, também era solteira, (era o que faltava!), e já dava ares de ser muito boa rapariga. Digo que dava ares porque com ela não convivi de perto (credo!) e só a via aos Domingos de manhã, quando ela, muito ajuizadinha e de ar sempre alegre, ia à missa das onze, a toque de sino, com as amigas, todas elas meninas casadoiras muito atinadas.


Iam, pelo meio da rua, enfiadas nos seus vestidos domingueiros, com tecidos comprados, em Valadares, no senhor Miguel, que era casado com a dona Felicidade, ou então no Porto, na Confiança ou na Casa Africana, onde chegou a trabalhar o Toninho Preto, depois de se cansar de vender por toda a parte os excelentes pasteis feitos pela dona Maria Correia.


Os vestidos de sair ao Domingo ou nos dias de festa eram confeccionados por medida, ao fim de imensas provas cheias de alinhavos e picadelas de alfinetes, pela dona Simbolina, casada com o senhor Casimiro, ela tia e ele tio do Mário Panela. Os que não eram de sair eram feitos na Bininha, que levava barato e ficava mais à mão, ou noutra costureira jeitosa que também não levasse caro nem ficasse muito longe.


A missa das onze era uma cerimónia muito casamenteira, apesar de muito bem vigiada pelo padre Coelho que, defendido pelo reflexo dos óculos e escondido pela sombria luz das velas, ia apontando na mente os olhares cruzados e mais demorados das sua ovelhas, para depois as admoestar severamente na próxima confissão em que ele as acabaria por apanhar.


A Igreja era, naqueles comedidos e austeros tempos, um lugar muito respeitável frequentado por mulheres que usavam combinação e saias muito abaixo do joelho, sem nunca sequer pensarem em mostrar os braços e muito menos o umbigo. Os homens faziam a barba e não furavam as orelhas nem usavam rabo-de-cavalo.


Tanto as santas missas de Domingo como as abençoadas novenas de Maio eram oportunidades quase únicas para que a gente jovem mais espigadota, desde os celestiais fiéis, como o António e a Gina, passando pelos agnósticos de purgatório, com eu, até aos ateus infernais, pudessem sair de casa e conviver em grupos não miscíveis muito bem demarcados, eles com eles e, lá mais longe, mas onde se pudessem fugidia e pudicamente catrapiscar, elas com elas; todos como se fossem grupos homossexuais de hoje, com muito orgulho seu, autoproclamados como assumidos.

 
Em cada grupo falava-se suficientemente alto, para que no outro se ouvissem as conversinhas e cada um captasse palavras soltas, muito ambíguas e subtis, mas indicadoras de atracção mútua, como se se ouvisse dizer “estás-me debaixo de olho”.


As castas meninas soltavam risinhos muito tímidos e inocentes, abafados por uma das mãos a tapar delicadamente a boca para dissimularem a pretensa malícia. Os também imaculados rapazes, davam sonoras gargalhadas parvas, uns com ambas as mãos nos bolsos, para mostrar que as calças eram compridas e estavam bem passadas, outros com uma mão num bolso e a outra a coçar o queixo para fingir que lhes ardia a cara por causa da barba.


Outro dia, embora fosse Sábado, houve missa, e o António e a Gina juntaram todos os seus, mais alguns dos muitos amigos, para comemorarem, com um atraso de dois dias, o 3 de Novembro de 1955.
Eu também fui e vivi um dos mais comoventes e inesquecíveis dias passados na minha terra e com a minha Família.


Domingo, 13 de Novembro de 2005,

um dia chuvoso e frio em que tive de ficar em casa por não saber onde deixei o raio da gabardina.

 

 

 

 

***  O António é o António Castro Ribeiro, meu querido conterrâneo e grande amigo de infância, que andou comigo na Escola Primária e no Liceu de Alexandre Herculano.

A Gina chama-se Virgínia e é a jóia que com ele casou no dia 3 de Novembro de 1955.

Tiveram quatro filhos, três meninas e um rapaz, e foram (e são)  muito felizes.

 

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