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Um furo no pneu de trás

 

Era sábado e pouco passava da uma da tarde quando cheguei a Valência, do lado de lá de Espanha, bem junto ao Mediterrâneo. Andei, quase uma hora, às voltas, à procura do hotel que havia reservado e que conhecia bem pelas fotografias que saquei da Net. Sabia que era grande e coisa bem visível, e que estava situado numa praça não muito longe da parte antiga da cidade, que era o que mais me interessava ver.

Atravessei, ziguezagueando as inúmeras pontes construídas sobre o leito primitivo do rio Túria, que já por ali passou. O Túria, esclareço, foi desviado do seu curso, não sei dizer se bem ou erradamente, para dar lugar a um longo e bem tratado parque, onde os valencianos podem respirar, estender as pernas e espraiar-se, para esquecerem o bulício árido daquela cidade grande, semelhante a tantas outras que eu considero iguais e feias. Lindas são quase todas aquelas pequenas cidades e terrinhas espanholas, onde sempre há algo para ver e onde a arte e a história, a cada passo, nos saltam aos pés para encantar os olhos e deleitar o espírito.

O velho casco de Valência, ao contrário do que acontece em quase todas as outras cidades espanholas, para mim, repito, para mim, pouca coisa de atraente tem. Uma imponente praça de touros implantada no centro da cidade passou a ser o meu ponto de orientação e referência; cruel por inerência, ela impõe-se, dominando a bela estação de caminhos-de-ferro, a Estação do Norte, que ao seu lado, muito abaixadinha e tímida, olha para o coração da cidade, com medo que lhe apareça um enorme touro tresmalhado pela frente.

Já há por aqui um cheirinho catalão que emana de algumas avenidas que são "avingudas", de alguns palácios que são "palaus", da Ponte de Fusta, que, ao contrário das outras, não é uma "puente", mas sim uma "pont", e da "Faculdad" de medicina que, como a de farmácia, estão ambas situadas num quarteirão chamado das "Facultats".

Os valencianos, pela pequena amostra daqueles poucos com quem fui obrigado a contactar, são gente muito simpática e acolhedora, que vai, pela certa, ficar zangadíssima comigo quando souber que eu, ao fim de apenas três curtos dias de estada, (vão os leitores poder apreciar como foram bem longos), me atrevi a julgar, levianamente, a sua terra, mal tendo tempo de a começar a conhecer. Sei que, quando acabar de contar o resto, eles me vão compreender e perdoar.

Andava eu, naquele aziago sábado, às voltas e baldrocas pelas ruas da cidade quando, uma vez mais, um qualquer semáforo me fez parar. O carro arrancou manquejante ao aparecer o verde e, logo, um "solícito" peão nos faz sinal e grita que temos um "pinchazo", apontando a roda de trás. Logo ali, cortei à direita, e estacionei inocentemente num amplo lugar que estava "por milagre" à minha espera. Abrem-se as duas únicas portas que o meu carro tem e, eu e a minha mulher, saímos para enfrentar a rude tarefa de mudar a roda, com as duas malas no passeio, para poder sair a roda de reserva, que não é de "pneu", porque não tem ar lá dentro, e é daquelas que não devem andar a mais de 80.

Um passante, grandalhão, quase colado a nós a tapar o horizonte, com um papel na mão, indica, neste, qualquer lugar ali escrito. Muito chato e pegajoso, pergunta-nos, em arrevesado e arrastado castelhano, onde ficava o hospital não sei quê.

Como desapareceu do carro a carteira da minha mulher, onde tínhamos todos os documentos que nos encharcam as carteiras, mais os cartões de crédito e de débito, uns eurozitos, e o meu anterior e muito saudoso computador portátil de boa memória, que ia no chão, descansadinho, atrás do meu lugar, deduzo que houve pelo menos mais dois colaboradores passantes, não duvido que gentis, que me aliviaram daquela terrível carga.

Metemos, muito mal conformados, as malas na bagageira, e, com um resto de alegria nos olhos, verificámos que nos restava o adorado telemóvel e, Céus! os "desnecessários" passaportes, que iam numa minha bolsa preta que uso quando me armo em turista.

Ao sábado, sem um único cêntimo, sem documentos, com mais de uma hora passada na Polícia a (com)participar, (havia lá mais algumas vítimas), a ocorrência, haverá alguém que, alguma vez na vida, possa vir a gostar de Valência?

Vou-vos contar o resto desta aventura quando, ao escrever as minhas memórias, tiver esquecido o incidente e recomeçado a comer, com volúpia, todo o tipo de "paellas".

Para já, nem um arrozinho malandro consigo levar à boca.
 


 

 *** Baseado numa história verídica que me aconteceu quando fui  de carro a Valência, aqui,  na nossa vizinha Espanha

 

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