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Um INI na casa da música

 

 

Em 28 de Março de 2008 fui à Casa da Música ouvir a Orquestra Nacional do Porto, dirigida nesse dia pelo maestro António Saiote, que além de português, coisa rara ali, também é um clarinetista virtuoso.

 

O programa era extremamente aliciante, com obras de Luís de Freitas Branco –“Antero de Quental”–, Mozart – “Concerto para clarinete e orquestra K. 622 “ e – Beethoven – “Sinfonia N. º 5” op. 67.

 

Fiquei na fila D – Sul, um pouco à frente e à direita do auditório e, não fora ter de acertar os óculos e curvar-me 75 graus e uns minutos para conseguir ver o número da minha cadeira, tudo, desta vez, tinha corrido muito bem.

 

A sala estava como um ovo muito bem recheado, mas na fila E, mesmo atrás de mim, havia dois lugares vazios, seguidos de um lugar cheio com um sujeito de meia-idade e cara bastante luzidia que tinha do seu outro lado mais um lugar vazio, onde ele pôs, o cachecol que me pareceu ser azul. Quase garanto que era azul.

 

Com toda a Orquestra a dar os retoques desordenados da praxe, o que eu, aliás, adoro ouvir, fez-se suavemente a penumbra para o acerto final ditado pelo violino padrão e ninguém veio ocupar os "dois mais um" lugares contíguos ao referido senhor.

Mil coisas podem ter acontecido para que ele tivesse a sorte de estar assim tão à larga e uma, confesso que um tanto tonta, que me veio à cabeça foi que ele fosse um excêntrico que tivesse comprado quatro bilhetes só para si para não ter ninguém a ofuscá-lo e ser bem visível de qualquer ponto da sala. Bom, adiante.

 

1.ª Parte

 

Entra ligeiro Saiote para o seu elevado posto gradeado e, após o habitual silêncio absoluto, logo se começam a ouvir os primeiros acordes do poema sinfónico “Antero de Quental”, uma obra muito bonita do português Luís de Freitas Branco que eu desconhecia e que não me recordo antes ter ouvido.

 

Aí a meio da execução, (a obra ao todo dura cerca de 12 minutos), comecei a ouvir uns sons graves e desgarrados cada vez mais frequentes dum instrumento não identificado, (INI), que eu na altura quase podia jurar ser de sopro. A excelente acústica da Sala Suggia permitia, pensei eu, que certos sons envolvessem a sala, dando a sensação de serem produzidos algures atrás de nós, fora do palco, no meio da assistência.  

 

Não fui, afinal, só eu a pensar o mesmo, pois algumas cabeças à minha frente se começaram a voltar interrogativamente para ver a origem daquele estranho som. Todos os olhares passavam por mim e, não me vendo com qualquer INI de boca, para meu grande alívio, logo os desviaram para outros lugares donde lhes parecia poder vir aquele inusitado som. Para lhes confirmar que não era eu o instrumentista, voltei também para trás a cabeça como a querer dizer-lhes que não era eu o intérprete e, ao mesmo tempo, para ver eu próprio se algures atrás de mim havia algum INI. Era um fenómeno próprio da acústica da Sala, pensei para mim.

   

Retirou-se Freitas Branco com muitas merecidas palmas, e com novos olhares incomodativos assestados para trás, passando e até demorando-se um pouco em mim. Tudo acabou por serenar à espera de ouvir entrar o jovem Mozart com o seu conhecido e belo concerto para clarinete op. 622.

 

A beleza da obra mais o espectacular solo de clarinete de um jovem virtuoso com apenas 18 anos chamado Julian Bliss entusiasmaram toda a gente, como vem entusiasmando meio mundo que tem a sorte de o poder ouvir.

 

Ainda a baterem palmas de pé, os ouvintes à minha frente insistiam com os seus olhares, que sempre me atravessavam, à procura do INI. Agora também eu, que ouço de vez em quando aquele CD, estava mais que certo que a acústica da sala não podia explicar aquele intrometido som que vinha seguramente algures lá de trás, não longe do meu lugar.

 

O senhor ao meu lado direito, que eu nunca antes tinha visto na vida, sorriu-se abertamente para mim e, enquanto batia palmas, olhava para trás que era o mesmo trás que o meu, como se quisesse indicar-me alguma coisa.

 

O INI, após a sua longa e aleatória intervenção anasalada, estava agora também de pé a bater palmas desalmadamente, de modo muito mais aceso que os demais. O instrumento não era afinal de sopro bocal, era de sorvo nasal.

 

Fim da 1.ª Parte.

 

Saí corajosamente para ir “lavar as mãos”, encontrei o descomunal portão H, (de Honens), e esperei que alguém saísse para aproveitar a boleia do portão aberto. De mãos lavadas e outra vez à boleia, saí do portão por onde tinha entrado e dirigi-me, muito nervoso com medo de me perder, para o meu lugar. Ainda havia grupos de gente às portas que tapavam as já de si difíceis de ler indicações das entradas e eu, que não devia ter perdido o Norte e ainda devia estar no Sul, meti-me no primeiro buraco rectangular que me apareceu. Não acertei bem na “mouche”, mas fui entrar uma porta mais acima, donde, aliviado e com as pulsações a descerem, já podia ver o meu lugar. Safa!

 

2.ª Parte

 

Beethoven, um favorito dos meus favoritos, Sinfonia N.º 5. Allegro con brio: Tá tá tá tá – Tá tá tá tá

 

O ex-INI, agora feito IMI (Instrumento Musical Identificado), já estava como um nababo a ocupar um dos seus quatro lugares, aparentemente bem desperto e fresco como se fosse uma jovem alface acabadinha de arrancar . Eu estava esperançado que IMI tivesse posto o sono em dia e que se ia acabar de vez aquela desgarrada estereofonia com a vivacidade e grandiosidade que Beethoven soube impor às suas sinfonias.

 

E de facto, no tão brioso e alegre primeiro andamento, assim sucedeu.

 

No “andante con moto” que  veio a seguir, tudo continuou bem e IMI se dormia, ou não ressonava, ou o barulho da moto andante tal não deixava ouvir.

 

Na pequena pausa entre este andamento e o “allegro” que se seguia, o caldo entornou-se e um ronco nasalado, muito parecido com uma torrente de erres, ecoou por toda a sala o que de certeza fez, lá fora e muito longe, oscilar todas as portas dos dois lavabos, incluindo as de entrada e as individuais interiores.  

 

IMI tinha-se deixado, mais uma vez, ir abaixo e o silêncio da pequena pausa entre andamentos fê-lo acordar, libertando aquele animalesco ronco errático que assustou toda a gente até à última fila.

 

Olhei para trás e vi que mantinha a cara levemente inclinada e que dormia a sono solto sem pesadelos, embalado pelos sons celestiais com que Beethoven o ajudou a continuar o maravilhoso sonho que o maldito intervalo havia interrompido.

 

Acabou o terceiro andamento e o homem, desta vez, muito mais ferrado no sono, não roncou ou, melhor, não errou, isto é, emitiu erres e mais erres de diferente amplitude e comprimento de onda.

  

Veio o último andamento, também allegro, e olhei para ver que tal estava no seu sono sereno e justo. Justo e sereno se manteve ele até ao final!

 

Palmas e mais palmas, alguns assobios duns intelectuais mais libertinos, mais uns gritos de alguns meninos e meninas e, quando olho para trás à procura de IMI , vejo, espantado, ... a sua cadeira vazia!

 

IMI estava bem acordado, de pé e com o seu cachecol azul ao pescoço, a bater mais palmas do que se o Porto tivesse marcado um golo fenomenal e ganho mais um campeonato.

 

Fim do concerto.

 

Agarrem-se bem que o estupor daquelas escadas são mesmo lixadas!

 

 

***

Acho que encontrei uma explicação lógica para o  enigmático caso IMI ( Instrumento Musical Identificado ). 

 

 1. o homem bebeu uns bons copos e, mais uma vez, engrossou.

 

 2. o homem tinha reservado 4 lugares: um para ele, outro prá mulher e mais dois prós filhos.

 

 3. a mulher, eram pr`aí 7 da tarde, alto e bom som , ou melhor, aos berros histéricos  e a bater com os pés  no châo, solene e ameaçadoramente, disse:

 

   "Se tu queres ir à porcaria (claro que ela, educadamente. não disse porcaria ) do concerto, meu grandessíssimo borrachâo, vais sozinho e bem sozinho, "óbistes"? Nem penses que algum de nós vai assim contigo nesse estado. És a vergonha desta casa! "

 

 4. muito direito e com os passos cuidosamenmte medidos, IMI, a solo, lá foi no seu próprio andamento ouvir os andamentos de Beethoven, que, como se sabe, era surdo como uma porta espessa e maciça e nunca há-de vir a imaginar o que naquela noite por ali se passou.

     

 

 *** 

Notas finais, num allegro com muito brio.

 

 a)  a Casa da Música fica no Porto 

 

 b)  toda aquela família deve ser gente também do Porto.

 

Agora, deixo à imaginação, (que nem muito fértil necessita ser), dos que vierem a ler isto, o que a pobre Senhora, com muito educados  berros, lhe  disse quando ele, ainda mais combalido, já lá muito pelas tantas, regressou finalmente a casa para, todo vestido, calçado e sem tirar o cachecol, dormir muito bem muito mal estendido no chão.  

 

Fo...go!

      

 

 

 

 

 

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