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Uma fronteira retirada

 

Os portugueses residentes que entram, pela primeira vez, em Portugal pela fronteira do Retiro, à saída de Badajoz, não precisariam de qualquer sinal para saber que chegaram abruptamente ao seu país natal.

 

Mal atravessa a linha fronteiriça, numa transição brusca, qualquer carro, mesmo provido da mais sofisticada suspensão, começa, como se tudo nele se tivesse desapertado, a chocalhar por todas as articulações.

 

Se de emigrantes nacionais se trata, estes de imediato reconhecem que estão finalmente no seu querido cantinho e logo começam a correr por todas as faces grossos fios de lágrimas, por tanto tempo contidas, numa mistura comovente de saudade e alegria.

 

O condutor, se não estava bem acordado como devia, e que já há uns largos quilómetros vinha a trautear cantigas apimbalhadas, para ir matando as recalcadas saudades e, principalmente, para não se deixar cair inteiramente no sono, vê-se em sérios apuros para dominar a ajoujada carripana e, por pouco, não se esbarra logo na primeira placa visível, uma coisa enorme e fosforescente que se lhe apresenta à direita a anunciar em letras bem gordas que está no “Alentejo”, com a palavra muito bem escarrapachada sobre uma repousante paisagem que tipifica a região por onde acaba de entrar.

 

Há lá uma outra pequena placa, muito bem escondida, em robusto cimento e com safadas letras, a anunciar “Portugal”, ali mandada pôr nos longínquos tempos de Salazar.

 

Se, no interior do carro, alguém vem ferrado no sono, apanha o grande susto da vida, pensando que foi ali, sabe lá onde, que Deus destinou viesse acabar os seus dias. Completamente desnorteado, ainda tem tempo de discernir que certamente alguma peça importante se partiu, forçando o carro a um voo sobre alguma ravina até atingir um campo muito mal amanhado onde se espalham, talvez, batatas muito duras acabadas de sair da terra.   

 

Se não é português e vem de algures do cimo da Europa em visita ao nosso país, sente-se perdido, entra em pânico e, num instintivo golpe de pé, trava a fundo, fazendo actuar em desordenados soluços o eficiente ABS, deixando as marcas dos pneus na fina camada de asfalto reles que por cá se usa para pavimentar estradas. De imediato, o forasteiro, mais que convencido que se enganou no caminho e que havia entrado numa qualquer propriedade privada com acessos em terra muito mal batida e esburacada, logo ali faz inversão de marcha, para ir em busca da estrada que pela certa perdeu e que o há-de levar a Portugal.

 

Fosse ele um pouco mais paciente e andasse algo informado destas coisas tão giras que por cá se passam, e, uns bons metros mais à frente, lhe apareceria uma mais reduzida placazinha a dizer que estava de facto em Portugal, uma das conhecidas estrelas da União Europeia, e que devia respeitar nas povoações, vejam bem, o limite de 60 km/hora! De limites de velocidade noutros sítios, nem pio, talvez por acção dos vândalos que se entretêm a destruir placas e por incúria dos distraídos que delas deviam cuidar.  

 

Se esse corajoso europeu do norte é do tipo casmurro e teima em prosseguir por aquele caminho, e se não é parvo de todo, logo deduz que para chegar a Portugal se tem primeiro de atravessar um país chamado Alentejo. Um indesculpável pormenor geopolítico que ele desconhecia quando saiu de casa, tal como acontece à maior parte dos turistas que aterram mais lá para o sul, à beira-mar, e pensam que o Algarve é um país independente, cuja capital deve ser Faro, onde se fala um inglês das docas, do mais difícil e arrevesado que há.

Para acalmar os ânimos dos mais atentos uma placa (mais uma!), algo escondida por entre as ervas, anuncia que se vai entrar numa “zona de intervenção da operação integrada de desenvolvimento do norte alentejano”. Toma!

 

Por amor de Deus, façam de conta que há ali perto um estádio de futebol para o Euro 2004 e comecem urgentemente a intervir, mesmo que desintegradamente, nessa tal operação em longa lista de espera, para que os turistas não dêem logo ali a volta, pensando ter entrado pela porta das traseiras de um qualquer país exótico, sem saberem bem ao certo de que tipo de mundo.

 

 

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