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Valeu-me o médico de família

 

Sinto olhares fugidios que me perscrutam e vozes sussurrantes que de mim falam quando estou ausente. Estou com medo, cansado de querer ser forte. Perdi a fé, cansado de não querer perder a esperança. Estou farto, cansado de estar cada vez mais farto. Estou em baixo. Ó homem não penses mais nisto, lê o tio Patinhas, preenche duas colunas do totoloto, tenta de vez em quando a raspadinha, sai de casa e vai mas é espairecer que é o que tu estás a precisar.

 

Fui tentar uma marcação para o médico de família, pessoa muito capaz e simpática perdida nos meandros doentios da burocracia estatal. Só daqui a três meses é que há vaga, diz-me do lado de lá do balcão uma jovem estagiária sorridente e acolhedora.

 

Marquei a consulta, mas saí de lá com uma terrível crise de pânico, espoletada por toda aquela gente a tossir e a queixar maleitas que mal se ouvia a televisão cheia de grão, pendurada lá muito em cima na minúscula sala de espera.

 

Alguns habituais utentes já dali conhecidos, de ar sadio, e que só vinham medir a tensão ou prolongar a baixa, riam-se muito alto ou gritavam as coisas banais da vida. Ninguém lia os cartazes. Estes, presos muito tortos com fita-cola às paredes, acoitam ácaros e outros promíscuos miasmas, tornando insalubre e ainda mais exíguo o espaço da saleta, inaugurada há apenas três ministros, de mandato curto, com a devida pompa eleiçoeira. 

 

Na data aprazada, três meses depois, lá apareci ansioso, cheio de formigueiros, uma hora antes da marcação. A televisão tinha mais grão e havia mais cartazes ainda mais tortos, por falta de espaço e perícia de quem os colou.

 

Depois de esperar duas horas, a cruzar e a descruzar as pernas, soube que o meu médico estava com baixa já há dois meses e que só retomaria o serviço daí a uns quatro. Tinham-me tentado avisar para casa mas nunca ninguém atendeu. Está com uma depressão e ninguém sabe onde pára, disse-me ao ouvido um companheiro de espera. Preferi aguardar que ele retomasse a actividade e remarquei a consulta para daí a quatro meses.

 

Lá apareci, então. Havia agora uma ventoinha presa à parede e a televisão continuava com grão mas tinha muitas barras enviesadas. Felizmente o médico voltara e lá me atendeu, gentil como sempre. Vinha moreno, perdera peso e respirava saúde atlética.

 

À medida que lhe ia contando a minha história, via alargar-se-lhe o sorriso para além do habitual. Eu também estive os últimos seis meses assim e sei bem o que isso é, disse-me ele confortado e confortando-me. Temo uma recaída, não estou definitivamente curado, mas agora sei como vou poder enfrentá-la, acrescentou, esfregando serenamente as mãos. Olhe, faça como eu, meta-se a caminho e vá urgentemente para as Antípodas. Enquanto vai e não vai, tome este ansiolítico três vezes por dia e este antidepressivo ao pequeno-almoço. Apareça-me daqui a seis meses.

 

Não querendo mostrar a minha ignorância, fui a correr para casa procurar num atlas recente, que com as permanentes convulsões certamente já não está actualizado, onde ficavam os Antípodas que eu logo imaginei serem umas ilhas paradisíacas na América Central. Mas, de Antípodas, nem cheiro. Na agência de viagens, consultaram brochuras e mais brochuras e nada. Até que apareceu o gerente, pessoa culta pelos vistos, que, peremptório, afirmou ser a Nova Zelândia, que fica exactamente a contrapé, do outro lado do nosso mundo a contramão. A viagem custava uma pipa de massa, mas vão-se os anéis e fiquem os dedos. Lá fui.

 

Cheguei, a vender saúde, na semana passada e logo fui visitar o médico para lhe dar gostosamente um lanoso e dócil carneiro e uma gaiola com um casal de kiwis, de bela penugem e longo bico curvo, que trouxe comigo. Estava outra vez com baixa! Tinha-se partido todo quando fazia parapente e tinha ossos escacados aí para uns seis meses. Como eu estava fino como nunca, resolvi esperar que ele retomasse o trabalho. Vinha óptimo e só tinha uma pequena cicatriz na testa. Pude, então dar-lhe o carneiro e os dois passarinhos que ele adorou pois nunca tinha visto nada assim.

 

Foi nessa altura que, como se um relâmpago o tivesse iluminado, ele compreendeu tudo e, desfazendo-se em desculpas pelo erro em que me havia induzido e pelo (abençoado) dinheiro que me fez gastar, me disse que, para ir às antípodas, bastava ir ali a Badajoz que fica, daqui, a uns tranquilos e escassos setenta quilómetros.

 

Prevenindo crises, lá nos encontramos agora os dois, amiudadamente, a comer “tapas” e a beber umas “cañas”, a rir como uns loucos, esquecidos do mundo ali ao lado, onde, com ele, passei a praticar parapente e asa delta nos cumes da solidão e do encanto da Serra de S. Mamede.

 

 

 

 

 

 

*** No dia em que saiu esta crónica, logo de manhã, uma gentil colaboradora da SIC telefonou-me para me convidar a participar num programa, cuja existência eu ignorava, chamado "Médico de Família". Declinei o amável convite, como podem compreender os que  conseguiram entender onde eu queria chegar. 

 

 

*** Um clube de praticantes de parapente citou algures esta minha crónica para enaltecer as vantagens da prática daquele desporto.

 

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