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Vamos lá a ver

 

Aqui há uns dias fui a uma consulta ao estonteante e bem divertido labirinto que é o Centro de Saúde de Portalegre, ainda não há muito tempo inaugurado.

 

À saída, aliviado e “desclaustrofobado”, sorvi umas boas colheradas do ar semi-puro que ali se respira, e cortei à direita por um carreirinho que acompanha o edifício, no sentido da portaria. Depois de ultrapassar uma zona “ajardinada” onde no chão se vem acumulando lixo de vários tipos, tamanhos e feitios, (há que tempos que não vem cá um ministro!), alcancei uma vedação com rede metálica no cimo, donde, através dos seus quadradinhos, numa nova perspectiva, podia avistar o célebre Parque Auto, de que numa anterior crónica aqui já falei. O exótico parque andava-me fisgado e, estando eu ali tão perto, queria assim aproveitar para melhor o mirar e remirar.

 

Trazia comigo a pequena câmara fotográfica digital que facilmente me cabe no bolso das calças e que quase sempre me acompanha para o bem e para o mal.

 

Estava eu completamente absorto na contemplação daquela linda obra estacionária, quando, de súbito, sem esperar, por trás das orelhas, ouvi a voz autoritária duma qualquer pessoa que passava, pela rua, atrás de mim. Tão grande susto me pregou que me fez fazer um disparo involuntário para o ar que nem um só dos pardais que em bando esvoaçaram, tanto ou mais assustados que eu, conseguiu apanhar.

 

Como pude, logo a seguir, confirmar, a voz dirigia-se a mim:Não pode tirar aqui fotografias! Disse-me sem alterar o passo, um senhor muito bem encamisado de branco, de calça escura e sapato a condizer, que deve ser ali auxiliar não sei exactamente de quê.

Agora, um pequeno parêntesis.

 

Como sabem, todas as pessoas, especialmente as que trabalham na função pública nos postos menos elevados, são auxiliares de qualquer coisa. Nas escolas são Auxiliares de Educação; na Saúde são Auxiliares de Acção Médica, etc., etc. Jardineiros, cozinheiros, estafetas, porteiros, varredores, todos agora auxiliares de algo ou alguém, caindo todos num daqueles grandes grupos.

 

Há muito que acabaram os contínuos, os serventes, os cobradores, etc., etc. Os que estão uns furos mais acima são todos doutores, inclusive os médicos, que usam, como se fosse um cachecol de três pontas, o estetoscópio pendurado no pescoço, para marcarem alguma diferença em relação aos seus auxiliares.

 

Só para apreciarem até onde isto vai reparem que, os antigos revisores da CP, que devem pertencer ao grande grupo dos Auxiliares de Transportes, ostentam nas suas lapelas uma interessantíssima placa onde diz: Operador de revisão e venda.Fechemos o parêntesis e continuemos.

 

Com o meu espicaçado coração a bater pelo menos nas 120 ppm (pulsações por minuto), justifiquei, como pude, a ousadia de utilizar aquele espaço para tirar, dali, umas fotos do referido parque. O tal senhor nada ligou às minhas explicações e, prosseguindo a sua marcha, agora um pouco voltado para mim, com ar de quem já é o que um dia gostava de vir a ser, acrescentou:Ouça bem o que eu lhe disse!

 

E foi-se ao seu destino, entrando pela casa da portaria onde andava uma auxiliar de acção médica na sua missão de higiene e limpeza do local.

 

 Fui buscar o carro que tinha estacionado ali perto e, armando-me ainda em mais parvo do que realmente aparento ser, abrandei até parar. Baixei o vidro e perguntei-lhe, com a maior ingenuidade que pude estampar na cara, se ali era algum quartel.

Não, não é nenhum quartel, mas só a administração pode autorizar a tirar fotografias.

 

Saí, aventurando-me à perigosa estrada, como se tivesse acabado de sair duma fábrica de armamento nuclear ou das instalações do Pentágono.

 

As pulsações foram baixando aí para 95, mas mal entrei em casa, a minha mulher, pelo meu aspecto que devia ser amarelo-esverdeado, aflita, logo chamou o 112 que de pronto apareceu e me levou à urgência do hospital. Ainda cá estou vivo, deitado de costas em cima duma marquesa muito dura de carnes, todo entubado e muito bem ventilado, sempre a pensar neste episódio, ouvindo vozes longínquas de todo o tipo de auxiliares de acção médica.

 

Vamos lá a ver se consigo sair daqui suficientemente recuperado para o poder vir a contar nesta cantinho das Favas Contadas.

 

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