top of page

Vou escrever um livro

 

Um dia, há bem pouco tempo, sonhei não sei bem o quê e acordei com uma enorme vontade de escrever um livro, fosse ele sobre o que fosse.

Embora eu já tenha um filho espigadote, e plantado vasos e vasos de árvores de Natal, não era o facto de me faltar apenas escrever um livro que, para me realizar, ia justificar tal impulso. Havia e há uma outra coisa.

Porque sempre fui muito mau no português, com ditados pejados de erros crassos que, por castigo, tive de escrever centenas e centenas de vezes, e também péssimo nas redacções, todas desconexas, onde, aos erros dos ditados, se vinham juntar os pontos, as vírgulas e a demais sinalização, achava que isso me impedia de vir a pensar em tal coisa.

Nunca ninguém, nem eu próprio, conseguiu decifrar a minha prosa, nem o que ela, entre ou dentro de linhas, pretendia dizer.

É um facto que sempre tive muito boa letra, mas, cá para mim, não achava que isso chegasse para encorajar alguém a escrever nem que fosse um postal das termas a dizer à família “estou bem graças a Deus, a água cheira muito a enxofre e a comida é muito boa”.

Perante isto, como ia eu agora ter a pretensão de escrever um livro, por mais bela e atractiva capa que ele viesse a ter?

Na escola, sempre escrevi por obrigação, apenas na mira de encher papel com fardos de palha seca e oca, para impressionar e confundir os professores que avaliam os pontos pela letra e ao metro. Diga-se que alguns chegaram, mais que uma vez, a dar-me a melhor nota da turma. Levava, orgulhoso, esses pontos para casa para mostrar ao meu pai que, embora fosse um ateu militante, se benzia comovido cada vez que os acabava de ler.

 

(Mal por mal, eu preferia a matemática, onde brilhei nas raízes quadradas exactas e nas contas de somar, caso estas não metessem a indecência das decimais nem a vergonha das fracções.

Por isso, parecerá não ser de entender como me surgiu esta vocação literária, nem explicar o porquê deste desejo, tão inesperado e serôdio).  

 

Continuo a ter muito boa letra, o que ajuda muito quem, como eu, não se entende nada com os computadores, mas, quanto a erros, ainda dou mais do que os que dava e, em pontuação, nem quero falar, embora saiba que anda para aí muita gente a safar-se muito bem por não utilizar essa praga que só serve para confundir e baralhar as pessoas.

Os únicos pontos que às vezes ponho mais ou menos no sítio são os de interrogação e os de exclamação.

Há um ponto, é o único, parece-me, que eu adoro pôr: é o ponto final! Não um ponto final qualquer, mas o ponto final do fim, e não os outros que, contra a minha vontade, se querem meter pelo meio.

Quando a folha está cheia de palavras soltas, mesmo que muitas delas calinada da grossa, esse salvador ponto final final sempre foi para mim um alívio tão grande, que eu perco tempos e tempos a engrossá-lo com a esferográfica às voltas para que se distinga muito bem dos outros que fui semeando ao acaso pelo caminho.

Estou decidido e vou mesmo escrever um livro.

Não vai ser um livro fininho, isso não pega e ninguém compra, e hei-de esticá-lo pelo menos até às 450 páginas. Vai ser um livro de capa mole onde, na primeira edição, além do nome do Autor, que vou ser eu, aparecem o título, que ainda não sei qual vai ser, e um autocolante redondo a dizer em letra gorda “5ª Edição – 250 000 exemplares vendidos”.

Uns amigos que nunca me leram, mas vão adorar a minha escrita, já têm prontos uns textozinhos para eu mandar espalhar nas dobras interiores da capa.

Assim que o tão ansiado novo Acordo Ortográfico entrar em vigor, começo logo a escrever. Em menos de quinze dias está pronto e nem vai ser preciso revê-lo.  

 

   

 

*** algumas partes  deste texto não foiram publicadas no PÚBLICO

 

 

*** Um novo Acordo Ortográfico - (NAO) - com que pouca gente está de acordo. E eu sou um deles.

 

                                                     NÃO

 

bottom of page