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FINICISA,

Fibras Sintéticas, SARL - (Volume I)

 

 

Histórias em banho-maria

 

 

Em 1964 começa em Portalegre, na Quinta de S. Vicente, a caminho de Castelo de Vide, a construção dos edifícios e infra-estruturas onde iria ser instalada a FINICISA, Fibras Sintéticas, SARL.

 

 Catorze hectares de terreno, de relevo ameno com solo rochoso granítico bem duro, são atravessados por um belo riacho, a Ribeira de S. Vicente, com repousantes e quase idílicas margens. Nos Invernos normais um forte caudal o engrossa, nos Verões mais agrestes definha-se até à morte. Viam-se, nos primeiros tempos, peixes aparentemente felizes no seu habitat tranquilo, sazonalmente escorraçados para jusante pela falta de água e pelos detritos arroxeados, de cheiro fétido intenso, vindos dos lagares de azeite vizinhos na sua velha faina artesanal.

 

 Três casas, duas junto à estrada que delimita a propriedade a nascente e uma no limite a poente, que sobreviveu, ocupavam, dispersas, umas nesgas do terreno. Uma delas, a norte quase junto à estrada, estava desocupada e ainda albergou alguns pioneiros que deram os primeiros passos na estruturação da empresa que estava a nascer ali ao lado.

Aí foram recrutados, em 1965, os primeiros operários que apareceram em monte fazendo fila para buscar um trabalho que os libertasse da incerteza do dia-a-dia árduo, dos salários míseros do campo e do sol-a-sol escaldante cheio dum brilho dramaticamente gélido e sombrio.

 

Lembro vê-los cá de cima, por trás dos vidros das toscas janelas da casa não menos tosca onde tinha o “gabinete”, saltarem de júbilo quando saíam com um emprego na mão a ganharem 1000 escudos por mês! Só o facto de ir receber  certinho todos os meses um ordenado, chovesse ou fizesse sol, devia dar a essa gente humilde, habituada a ganhar ao dia, se dia havia, sempre explorada e sem horizontes, uma sensação de felicidade estranha que eu não sei descrever. Vieram, surpreendidos, não sei por que benemerente acerto de contas, a ganhar 1010. Uma fortuna.

A casa a poente, mais isolada, era habitada pelo Carlos, um dos escolhidos para trabalhar connosco, que, nas horas de repouso dos turnos e das folgas, tal como muitos faziam noutros lugares, cultivava a terra, engordava o gado e a bicharada, dando ao conjunto um ar de vida bucólica que servia de contraste marcado entre a vida pura e serena do campo e a lufa-lufa duma indústria avançada, embora de muito modesta dimensão. Mundos diferentes que conviviam lado a lado, sem atritos, sem quezílias, mostrando ser possível, e mais que  desejável, viver duas épocas simultaneamente, tendo o passado presente com o futuro a ele agarrado.

 

 A outra casa, no limite sul e também junto à estrada, não cheguei a conhecê-la em pé. No seu local foi implantada a portaria, os balneários e o refeitório, onde quem queria comia do seu pequeno tacho de alumínio ou cortava rodelas de chouriço, nacos de toucinho e abonadas fatias de pão com o inseparável canivete que todo o bom alentejano usa para levar o cibo até à boca, sem nunca tirar o boné. 

 

Havia ainda duas outras casas ocupadas por caseiros, também confinando com a estrada, das quais apenas resta uma, com a sua pequena horta, ocupada por um caseiro paredes-meias com o Grupo do Pessoal que, muito mais tarde, lá se instalou.

 

 Na báscula da portaria pesava-se de tudo: carneiros, porcos, lenha, cortiça, carroças com azeitona, a vaca pró matadouro, as matérias-primas e subsidiárias e os produtos acabados. Nunca constou que, apesar dessa diversidade de coisas ali pesadas, alguma vez acontecesse ir fibra prós lagares ou azeitonas prós clientes. 

 

Três irmãos, por idade decrescente, Gui, Manuel e Francisco Fino já instalados na sua cidade de ad

opção desenvolviam outras actividades afins, em especial a fabricação de tecidos na reputada Fábrica de Lanifícios de Portalegre e o fabrico de tapeçarias nas Manufacturas de Tapeçarias de Portalegre, que realiza obras de arte maravilhosas, conhecidas, respectivamente, por “os lanifícios” e “a fábrica dos tapetes”.

 

Decidiram, com o seu espírito empreendedor, ir bastante mais longe: fabricar em Portugal, tão carenciado de indústrias dignas desse nome, uma das matérias-primas, o poliéster, que até aí importavam para integrar no fabrico dos seus tecidos. Corajosamente, escolheram a sua terra adoptiva para erguer o seu ambicioso projecto.

Tudo estava longe: os fornecedores, os clientes, os contactos, a pegajosa Alfândega, o solícito despachante e os meandros do poder influente.

 

  Faltava a água no Verão e também nas outras três estações do ano; fugia e flutuava a luz, a toda e qualquer hora, porque começava a chover, porque ventava, porque caiu um poste ou porque, algures, uma cegonha ignorante destas coisas da electricidade provocou um disparo. Voltava a luz, hesitante, muito mais trémula e triste que vela de cera em casa mortuária, reatava-se o trabalho, roncavam esfalfados e febris os pobres dos motores eléctricos, e lá tornava ela, como que a gozar com a malta, a faltar outra vez, desta porque parou de chover e ventar, caiu uma árvore na linha, uma faísca na subestação de Benavente ou disparou um disjuntor no Peso da Régua.

 

 As comunicações eram lentas e dificílimas, sem faxes, telexes ou bip-bips, com telefones de martírio, caminhos tortuosos a imitarem estradas, já então em mau estado e sem sinais, e um caminho-de-ferro a condizer com as estradas, e sem porto nem aeroporto que nos servisse e a toda a região.

 

Um aeroporto esteve por um fio, quando a empresa mudou para outras promissoras mãos. Hesitou-se no local onde seria instalado, mas havia um certo consenso nacional na opção Urra e a própria “Luftwaffe” a tal não se opunha, embora preferisse os Fortios por o nome lhes soar a qualquer coisa melhor. A hesitação foi fatal e o projecto gorou-se, mas esperanças não faltam de que em tal se volte a falar um dia.

 

No porto também se chegou a pensar nessa altura, mas os ecologistas, sempre uns picuinhas muito chatos, puseram logo a hipótese em águas de bacalhau, do crescido e não ameaçado de extinção, alegando que o equilíbrio orni-itio-fitológico ficaria, severa e irreversivelmente, ameaçado. E assim está Portalegre sem um porto nem um aeroporto por causa destas miudezas paroquiais, demasiado retrógradas e mesquinhas.

 

Havia o imundo ”stencyl” para fazer impressos, safados, borrados, ilegíveis e todos furados, que espatifava, irremediavelmente, as fatiotas de quem os produzia e as mãos de quem os pretendia ler.

 

Havia o papel químico e havia, como ainda hoje há, o carimbo, com a sua inseparável almofada húmida e o seu bater pesado a dois tempos, pam-pam, pam-pam, com que quem o usa descarrega a ira e amaldiçoa a vida. O carimbo, em Portugal, é o símbolo da burocracia, do faz-que-anda-e-não-anda. Alguns ingleses aprenderam, coisa raríssima, quase correctamente, a dizer carimbo tantas vezes ouviram falar nele e sentiram a sua fulcral importância.

 

O selo branco é o seu homólogo quase silencioso e o papel azul de vinte e cinco linhas, muito bem contadas, o seu parceiro colorido. O papel azul era essencialmente usado para fazer petições, (hoje seria usado para fazer exigências ameaçadoras com direito a fecho de portas a cadeado e a ameaças cobardes e torpes) de toda a espécie, nas quais se incluíam os peditórios de todo o tipo e feitio.

 

Em azul, havia também o saudoso papel selado, transportado por norma, como o das tais vinte e cinco linhas, enrolado em canudo, onde se afirmavam solenemente as mais perversas aldrabices, e os médicos passavam atestados onde juravam, a pés juntos, pela sua honra, eu seja ceguinho, que alguém que nunca viram estava ou estivera doente impossibilitado de sair da cama. Pelas ruas de todo o país via-se gente e mais gente apanhada pela burocracia com o passo estugado de canudo na mão a tratar de qualquer coisa.

 

 Os irmãos Fino procuraram quem partilhasse a tecnologia, o chamado “know-how”, em troca da sua iniciativa e espírito empresarial ousado já bem comprovados. Acabaram por escolher como associado o gigante inglês da indústria química, a ICI, (Imperial Chemical Industries), que, entre muitas outras coisas, fabricava e comercializava o poliéster por si desenvolvido, a que deu o nome de Terylene.

 

 Para seguir o projecto assentaram arraiais na Profabril, então na Avenida Infante Santo, em Lisboa, o Roger Roper e o Jim Robinson. O chefe do projecto era Cyril Yarrow que se movimentava com frenesim e, esporadicamente, vinha a Portugal e muito menos a Portalegre. Mas aqui veio pelo menos uma vez que lhe ficou bem gravada na memória. Havia na pacata cidade a humilde mas lavadinha Pensão Vinte e Um e outros tugúrios menos imponentes.

Yarrow, para não cair em  tanta humildade, foi um dia convidado da casa de Manuel Fino, anexa à Fábrica de Lanifícios de Portalegre, para aí pernoitar. Acordou manhã cedo, borrado de pânico, com a sirene estridente da fábrica a silvar-lhe aflitivamente nos ouvidos, (como ainda hoje silva esse estupor, que eu ouço em casa quando não há vento ou está Sul), julgando tratar-se de mais um arrasador raid nazi ou da chegada de uma devastadora V2 com a mesma origem. Morreu Yarrow mais tarde vítima de um coração que este incidente pós segunda guerra mundial muito ajudou a enfraquecer.

 

O Jim e muito menos o Roger vinham raramente a Portalegre na fase da construção das infra-estruturas. Depois de almoçarem n` “O Melhor do Mundo”, lá se iam no mesmo dia pela mesma tortuosa estrada que os trouxera, atravessando bem pelo meio todas as aldeias e vilórias até, com algum alívio, cortarem à direita, em Pegões, para chegarem a Lisboa, via Vila Franca.

 

 Na capital, a ICI tinha o seu escritório pejado de misses portuguesas de todas as idades e estado civil a quem tratavam e se tratavam por miss Figueiredo, miss Ferros, etc. Mesmo que casassem com um Lopes ou um Rodrigues, mantinham virginalmente o miss colado ao seu apelido de solteira. Typical british!

 No escritório do Porto, na Rua de Sá da Bandeira, onde eu fui entrevistado pelo Eng. W.Spohr, respondendo a um anúncio de “O Primeiro de Janeiro”, creio que não havia misses mas havia a Maria Helena e outras portuguesas não "missáveis".

 

Como apontamento, informo que, à busca de emprego, eu só respondia a anúncios do velho “Janeiro”, publicado no Porto, porque queria ficar a trabalhar no Norte que me viu nascer. Saiu-me Portalegre, que eu fui ver a correr se/onde ficava no mapa. O projecto era aliciante, uma fábrica a nascer, a ICI por trás, e embora a moeda com que me pagavam fosse a côdea seca, resolvi afastar-me para sudeste uns infernais trezentos e trinta quilómetros para enfrentar o esperançoso desafio.

 

 Por um bocadinho, não resisto e vou sair do banho-maria a que me propus.

 

 Um “self-made man”, português ilhéu, snobe convicto que lhe aproveite, pontificava em Lisboa, na sede da ICI, na Rua Filipe Folque, 2. Só uma vez fui ao seu vasto gabinete, uma espécie de Estádio do Benfica com quatro ou mais anéis, espessamente alcatifado e, onde eu, incauto e de baixa estatura, quase me afoguei até ao pescoço ao lá pôr os pés por razões do estágio que iria fazer em Inglaterra. Em não mais de 20 minutos, fiquei a conhecê-lo de vista, felizmente da grossa, e também de ginjeira.

 

Estavam comigo os meus, hoje e desde então sempre muito amigos, Roger Roper e o futuro director da fábrica e meu entrevistador, W.Spohr. Em dada altura, vale mesmo a pena contar, começa o artista o seu número circense para se impor perante todos e exponenciar-se, disso estou seguro, para impressionar o Roper. Ele não tinha um curso, como hoje toda a gente tem, era ao que diziam muito bem pago, e aí estava mais uma rica ocasião para fazer constar no Império Britânico, por via daquele seu súbdito, os seus méritos e o seu enorme poder, fazendo-o catapultar para voos mais altos.  

 

Estávamos numa ditadura e eram um nadinha mais comuns que hoje exibições do género, apesar dos permanentes seminários que havia sobre Relações Humanas que toda a gente seguia, poucos punham em prática e uns quantos só aplicavam, servilmente, no sentido ascendente e mandavam, despoticamente, às malvas no descendente.

 

Lia ele uma carta ou o que fosse em formato A4 e, por qualquer dificuldade que teve, W. Spohr, solícito, levantou-se para, junto dele e da pauta, o ajudar na interpretação. Ralhou-lhe com mau hálito, que se espalhou rapidamente pela sala. Que não gostava que estivessem por trás dele por cima do ombro a ler o que ele ia soletrando. Vá já para o seu lugar, (se não disse, deu bem a entender), escondendo gulosamente o papel contra o peito. A sua língua era preferencialmente o inglês e quase que juro que o tal papel estava escrito nessa língua. Roger sorriu docemente como uma Mona Lisa ainda mais casta do que a que todos conhecemos encaixilhada, e não sei se ainda hoje continua a narrar a edificante cena à gargalhada, nos pubs de Inglaterra.

 

Chegou a minha vez. Eu pretendia levar o meu carro para Inglaterra, já que ia lá estar cerca de seis meses e naturalmente me ia fazer muito jeito, como fez, para ir para o trabalho e dar umas curvas pela esquerda nos longos fins-de-semana, tanto mais que eu não bebia, não atirava dardos, não jogava o bingo, nem fazia tricot.

A minha humilde proposta, de homem que é pago à côdea dura, era que me dessem o cacau equivalente à passagem de avião e dois dias para a longa viagem. Irritou-se, rodou com chiadeira na sumptuosa cadeira mal lubrificada, e, perdigotando-me, despejou, vendo-me com um chapéu na mão: Mas então você, sua grande besta, julga que vai de férias? (O “sua grande besta” é meu). Fez-me o favor de anuir, depois de dar o recado, para inglês e Spohr ver, e, agora particularmente para mim, ainda a cheirar mais horrivelmente da boca. Da boca também mal fiquei a cheirar por o ter mandado, educadamente, muito baixinho, à merda, para  ninguém tal ouvir, dada a solenidade do local e o risco de ir logo ali para a “street ”.  

 

 Lembro à gente de hoje que qualquer bicho, careta ou não, mais ou menos importante, que não falasse português e viesse cá passar uns dias em serviço, tinha logo uma carripana para uso próprio que preferencialmente guiava pela esquerda, especialmente se estava toldado pelos copos traiçoeiros. Comiam pouco, mas até à indigestão, bebiam o que e quanto lhes apetecesse, alguns deles até cair, metiam os cigarros na conta, entregavam no escritório as cartas prá família sem o mísero selo, mandavam lavar a roupa por conta, recebiam na origem o vencimento na íntegra, tinham principescas ajudas de custo, gozavam os nossos feriados e os da sua pátria de origem, iam a casa periodicamente mudar o óleo e atestar o depósito, etc., etc.

 

 Quando fui para Redcar, cidadezinha costeira bastante "acaparicada", perto do grandioso complexo fabril de Wilton, tanto eu como o meu companheiro de hotel, W.Spohr, e os demais estagiários, o denominado grupo dos magriços, não tínhamos um penny pró bolso. Houve dúvidas, ainda nós estávamos em Portugal, se se devia pagar os passaportes a quem não os possuía e houve também muitas dúvidas se deviam pagar a estada em Lisboa, enquanto dávamos uma limadela muito bastarda no inglês, no Instituto Britânico da capital.

 

Algum tempo depois de estarmos em Wilton, num gesto magnânimo, e porque a arraia mais miúda se queixou de não ter o tal penny pró tabaco, passei, por tabela, e graças a eles, muito agradecido ainda lhes estou, a receber sete libras por semana. Os reivindicativos moços, pioneiros na exigência do célebre salário mínimo garantido, democraticamente, passaram a receber três, já que a vida para eles era muito mais barata. A libra na altura valia oitenta paus, que era quanto que custava em média uma refeição aceitável. Passaram a passar menos fome, ganharam cor, e foi um tal gastar;  fizeram-se mesmo muitas asneiras com tanto dinheiro a ajoujar os deformados bolsos!

 

 W.Spohr levou consigo a Lisdália, sua Mulher que Deus cedo quis levar, e o rebento mais novo, a Isabelinha, ainda de colo, com um ano e pouco. Alojaram-nos aos três e meio  no mesmo hotel em Redcar, o Park Hotel, onde jantávamos e a cozinha, apesar de inglesa, não era nada nada  má. A  Isabelinha dificilmente ficava um segundo sossegada no seu carrinho, sempre vigiada entre as garfadas dos pais. Começou mais tarde ali a  dar os primeiros passos, se não erro, na sala de jantar.  

 

Para não sobrecarregar a conta, bebíamos, um tanto a medo, eu e ele, ao jantar um copinho de cerveja cada um. O jornal pagávamo-lo, telefonar para casa nem pensar, até porque demorava horas para conseguir a sempre péssima ligação com dezenas de vozes pelo meio a dizerem “hallo, hallo!”, em inglês e de porra para cima, em português.

 Mais tarde W. Spohr lá conseguiu arranjar um carrito que alguém encontrou sem dono e seguramente sem aquele tal senhor de Lisboa saber, e foi viver, em família, numa casinha ali perto. Fiquei só, no “room number six”, bem em frente ao gélido, mas imensamente belo, Mar do Norte. A janela era quase toda ela fixa e, por causa da fria ventania e das fortes chuvadas, apenas basculava aí 4  polegadas de largura no topo, permitindo abrir uma fisguinha lá em cima para  rápidas renovações do ar.

 

Nunca vi, na Inglaterra que conheço, muito menos em dias de sol, um inglês à janela com a cabeça de fora. As janelas em geral não abrem e se há sol vai toda a gente deitar-se na relva do “back garden”, os homens em tronco nu e as senhoras de mangas arregaçadas com as saias bem puxadas quase até à cintura. Em muitas casas, quem passa pela rua vê, muito bem encostadas ao vidro da janela que dá para a rua, as costas mal acabadas do espelho do toucador. Quem arranja o toucado recebe assim directamente na cara a fosca luz que vem do exterior. Como não há portadas interiores, assim se matam, da maneira mais inestética imaginável, dois “rabbits” ao mesmo tempo.    

 

 Em Saltburn, uma muito linda e ainda mais sossegada terra, também junto àquele mesmo belo mar sereno de águas geladas, e a umas curtas milhas de Redcar, viviam em “digs” respeitáveis os futuros quadros médios, todos eles alentejanos de raiz à excepção do Agente-Técnico (era o título da altura) Martins, que fora importado do Seixal para dirigir o laboratório. Imagino cá para mim, sem medo de errar, onde alguns deles passavam os tempos livres, jovens como eram e alentejanos de boa cepa como continuaram a ser. Faltavam-lhes os petiscos e uns bons copos de tintol à tardinha mas, com bons dentes e boa boca, comiam e bebiam outras coisas para passar o tempo, apagar as sedes e mitigar as fomes.

 

O Bicho e o Martins importado, um moço irrequieto que os ingleses diziam ser, (e era), “full of beans”, de perna ligeira mas muito curta, dedicaram os seus fins-de-semana mais ao lado cultural, juntando-se a grupos organizados de velhas gaiteiras, com o ponteiro a rondar os oitenta, coloridas e viçosas viúvas consoláveis, em visitas de pacote aos arredores em “buses” alcatifados e bem aquecidos,  onde dentro não chovia e raramente se roçava o envergonhado sol inglês. Foi assim que ambos aprenderam a falar fluentemente um inglês arcaico, que ninguém entendia a não ser todas as velhas da região, com um sopro de dentadura postiça mal ajustada, usado há gerações no Yorkshire. Não custa a crer que ambos despertaram violentas paixões naqueles corações solitários há muito vagos e aparentemente adormecidos.

 

 Julgo que todos passaram uns bons tempos, especialmente a partir da semana em que passaram a receber as referidas três “fucking pounds”. Eu, que para mais, recebia sete não sabia o que fazer a tanto dinheiro, ainda consegui aforrar uns patacos e trouxe de lá uma pipa de massa. Perdi na altura a minha oportunidade de mandar fazer uma boa vivenda na Serra. Burrices da juventude!

 

A “pound” da época tinha vinte “shillings” e o “shilling” 12 “pennies”; havia ainda o “half-penny” que equivalia, para os ingleses, ao nosso meio tostão furado. Só para lidar com os trocos era preciso um curso e ter bolsos reforçados para transportar a monstruosa carga. Havia ainda a “guinea”, uma moeda fantasma usada pelos piratas, que valia 21 “shillings” e não era mais que um artifício dos comerciantes apiratados para meterem ao “pocket” mais 5% sem assustar o “Joe” ,que, em português,  equivale ao nosso “Zé”.

 Apreciámos o chá, adorámos as gentes, encantámo-nos com as terras e, se não fosse a chuva, o frio, o vento e o sol andar sempre a brincar às escondidas, teríamos gostado do tempo,  que em inglês corrente se chama  “bloody weather”.

 Já bem enxuto, assentei arraiais em Portalegre, via Porto, no dia 15 de Agosto, feriado, depois da parte mais tormentosa da viajem, desde que saí de Inglaterra, que era vir dali, tão longe, a 330 km.

Fui, seguindo as toscas setas, já ao tempo rascas e safadas, que indicavam Serra, até encontrar a Estalagem da Quinta da Saúde, onde na altura estava o Zé Henriques que começou a dar os primeiros passos na sua carreira ascensional na hotelaria.

 

 A Estalagem estava cheia nessa noite e o Zé Henriques, para garantir o cliente, albergou-me na vivenda em frente onde vivia, uns metros abaixo na estrada da serra, até que houve vaga dois dias depois. Caímos lá quase todos e mesmo W. Spohr, que vivia junto à Farmácia Chambel, onde permaneceu uns anos, connosco esteve uns dias até se processar a mudança para o seu seu santo retiro em S. Bernardo.

 

 Lá em cima estava-se mesmo bem, numa espécie de termas minhotas, apesar de todas as vicissitudes por que tínhamos que passar, longe do bulício trepidante da cidade onde pelo menos uma boa dúzia de carros existia que subiam, agilmente, a Rua dos Canastreiros e desciam, a passo de caracol, a do Comércio, todo o santo dia, para mostrar a pandeireta, ver as montras da Pérola, os ousados manequins do Umbelino e meter na mala as compras feitas no hiperpequenomercado Pereira.

 

 Portalegre era, já então, palco dos mais infernais engarrafamentos especialmente às quartas e sábados em que o trânsito era engrossado com o afluxo de carroças, de rodas ruidosas com aro de ferro, puxadas por burros pacóvios todos enguisalhados que vinham dos arredores abastecer o mercado. Os ingleses, sem nunca o dizerem, adoravam o mercado por lhes fazer lembrar, minorando saudades, os ”Marks & Spencer” de toda a parte ou, com um pouco mais de saudade em cima, o ”Selfridges” de Londres.

 

 Estava-se lá bem, esquecendo todas as permanentes arrelias funcionais, porque se convivia familiarmente, clientes, patrões e empregados em idade de escola, e se cimentavam amizades que nunca mais se desfizeram com o passar dos anos. Havia a Teresinha com oito anitos, filha do Zé Henriques e da D. Helena, que não largava a televisão até ao fim do hino, pum!, para ir no outro dia muito ensonada para o Colégio das Meninas. Não esqueço o Boby, com a mesma idade da Teresinha, que não nos largava a nós e, só nas patas de trás, assistia às refeições esperando, com êxito, delas partilhar. Bom amigo nosso, o inesquecível Boby!

 

 É certo que se viviam 24 horas de Finicisa, algumas vezes duras e arrasantes. É também certo que faltava a água, faltava o gás, e, todos os dias, várias vezes ao dia, faltava a luz. Umas vezes faltava uma coisa, o que era bom, outras vezes faltavam duas, e não era mau, e, quase sempre, faltava tudo ao mesmo tempo, que era menos bom, mas dava pra rir, o que era óptimo. Tudo normalmente era aceite pelos eremitas com um sorriso amarelo nos lábios que acabava fatalmente em riso todo aberto, completamente escancarado, acompanhado de ruidosas gargalhadas, que o Zé Henriques, sorrindo acomodado, acostumado e vacinado, galhardamente ouvia, com desportivismo para uns  e “fairplay” para outros.

 

 Como os que vinham eram aloirados, tinham olhos azuis e não falavam português recebiam pró bolso seguramente muito mais que as tais três libras (o equivalente a 240 escudos) por semana e tinham tudo praticamente pago, inclusive as meias-solas e o conserto da roupa. Ficou célebre o estribilho do Jim, uma jóia de moço, no seu ”português” palopiano, exótico e bem enrolado, no meio dos ágapes e já todo entornado, elevar o braço e a voz para pedir: ”Mais uma garrafa e dois maços de Sintra”. Estes prá viajem e também prá conta!

 

O Collins adorava e encharcava-se no Brandy Borges *****. Julgo que o preferia ao “tea” que emborcava em Inglaterra a toda a hora, mexendo-o com um lápis cheio de pátina com que também coçava o fundo das orelhas e que sempre o acompanhava, metido no bolso ornamental do casaco com o bico um tanto rombudo voltado para cima.

O chá em Inglaterra bebe-se com leite, e para ser mais saboroso toma-se  numa caneca com asa, cheia de sarro muito bem entranhado.  Ai de alguém que se atreva a retirá-lo, como aconteceu a um dos nossos companheiros que quis ser gentil e lavou a fundo uma dessas canecas de um inglês qualquer que, completamente perdido e vesgo com aquela gentileza saloia, muito alto ganiu na altura, ficando, durante os próximos dez anos que se seguiram de recuperação da pátina, condenado a beber uma mijoca desenxabida.

 

 Íamos para a Fábrica de segunda a sábado mais alguns domingos. Aproximava-se o arranque em fins de 1965.

 Os padres do seminário, de preto, ainda de cabeção e coroa, todos eles anafados, redondos e rasteirinhos, iam lá só aos domingos depois do almoço, beatificamente como se lessem o breviário, passar a santa tarde a fazer a digestão, de cá para lá, de lá para cá, para o picadeiro que viria, mais tarde, a ser o primeiro armazém de produtos acabados e mais tarde ainda, em 1969, a famosa linha de estiragem nº 2. O Collins, heregemente, enxotou-os num desses domingos, batendo as palmas e movimentando os braços como quem enxota teimosas galinhas pretas de pescoço com penas brancas. O Collins além de ateu também não era nutricionista e não entendia aquele sadio método de fazer digestões a passo e em grupo.

 

 Recorde-se que os britânicos, habituados a não deixar nada no prato, (levam os ossos que restam para o cão), a comer frugalmente mas a beber galões de “tea” e “beer”, aguentam muitíssimo mal, nos primeiros impactes, duas refeições de garfo por dia, para mais cheias de azeite, azeitonas, nacos de linguiça, rodelas de chouriço e cacholeira, bacalhau salgado, orelheira, carapaus e fanecas com olhos bem abertos, chocos com tinta, presunto cru, “my God”!!, não há nada que chegue ao ”Yorkshire pudding” e que saudades dos “fish & chips ” embrulhados nas páginas porcas do ”Daily Mirror”!

 

Alguns adoeceram logo no dia da chegada, muitos passaram bastante mal a noite depois do traiçoeiro jantar de boas-vindas, e todos regressavam ainda abalados ao Reino Unido para contar em casa à incrédula mulher e no “Pub” a sua odisseia vivida num país exótico, onde, em casa, havia além dos chuveiros a porcaria dos bidés e, na rua, se andava pela direita. Aqui na Europa, lá em baixo, ao virar da esquina!

 O Collins, que passava às vezes férias em Espanha, onde um dia ali comprou um “finca” de que depois se desfez, não fosse o diabo tecê-las, quando Franco bateu a bota. Aprendeu a dizer em português ”donde está la retrete de los caballeros? ”. Consultava o dicionário de "pocket"  palavra a palavra, para dizer umas coisas. Louvo-lhe o inglório esforço.

 

Quando notou que o Romão, um dos magriços, estava a ficar gordo, puxando do dicionário, disse-lhe que ele estava muito ”corpu...lento”. O mister, como eu ainda hoje trato o Romão, abespinhou-se ofendido e foi necessário explicar-lhe muito bem que o que o mr Collins queria dizer era corpulento, com U e tudo pegado. O Romão, que tratava todos os ingleses por mister, (como agora por cá se tratam os treinadores de futebol), sem acompanhamento e com as letras todas, razão do meu tratamento para com ele, ao fim duns anos, parece que lhe perdoou a suposta ofensa, pois hoje quando tal relembra, sempre ri, gostosamente, com o mal-entendido.

 

 O Jim aportuguesou-se no que lhe convinha, aprendeu ao fim dos vários meses a balbuciar no máximo nove palavras, comia bem, sem entrar em bacalhoadas nem "chòriçadas", claro, e bebia bastante melhor, pondo o dente em quase tudo o mais. Uma ou outra vez queixava-se da úlcera e comia menos durante uns dias sem nunca deixar de beber, como se pode deduzir. Que se lixe a úlcera!

 

O Jim detestava alhos, não podia com eles. Parava com o bife e quase vomitava o longínquo pequeno-almoço se enxergava uma lasca de alho perdido no prato. Quando regressou a Inglaterra e se preparava gulosamente para comer tenros bifes, altos e suculentos, nos tempos em que as vacas andavam no seu juízo, estranhou o paladar insípido da carne inglesa. Desde aí a mulher passou a deitar alho na comida, sem ele saber, senão o pobre do homem não comia e podia, aguado, ir-se abaixo.

 

 O Roper, um homem bastante mais culto  que todos mais, sempre sóbrio e espartano, foi o único inglês que conheci que estudou e aprendeu umas coisas da nossa língua. Falava muito alto quando tentava o português, não fosse o problema de não o entendermos ser devido à nossa surdez. Ainda hoje, todos os anos, junto com as Boas-Festas, me escreve uma cartinha gentil no seu português que eu traduzo para o meu, e onde me conta as novidades e as vicissitudes por que passou durante o ano que findou.

 

 O Mike Rowntree, outro que viria até cá mais tarde, por não ter lugar em Wilton que ia definhando, estudou português, baralhou-o com o espanhol de Saragoça, onde esteve a trabalhar para a Nurel, e hoje não diz mais que ”bom-dia”, segundo me confessou. Ignoro se, o bom-dia que ainda diz, certamente mal, o diz na ocasião certa, pelo menos só até ao pôr-do-sol.

 

 O Tom Nosworthy, com antepassados longínquos na América latina, creio que na Colômbia, arranhava o ”castelhano” e tentava obstinadamente entender-se não usando o inglês. Era geneticamente anglófobo.

Esteve cá, sedeado em Castelo de Vide com a mulher que ainda hoje o atura. Também, como o Rowntree, veio para um santo exílio, já prenúncio do descalabro de Wilton e Harrogate. Enquanto cá esteve, deu largas à sua imaginação reprimida, fez experiências de todo o tipo, e mandou toneladas e toneladas de fibras para desperdício, por querer cumprir à risca os mais apertados parâmetros, sem saber se eles importavam ou não ao destino que o cliente lhes ia dar. Bebeu muitíssimo mais do que comeu porque, dizia-me ele, não tinha espaço para tudo e preferia a primeira opção à segunda.

 

Ainda hoje nos escrevemos anualmente pelo Natal com umas notas pinturescas da sua Anne-Louise, que se regalou de aguarelar Castelo de Vide, de gozar o Sol vivo e a brancura do casario. Vivem onde sempre viveram numa aldeiazinha, Leelhom, isolada do mundo, próxima da encantadora cidadezinha piscatória de Whitby e têm netos do único filho, o ”Chico”, como a ele lhe chamava o pai.

 

O Tom, com a sua costela espanhola, com vestígios ósseos de inca, não gostava, como disse, dos ingleses nem, concluía sem esforço toda a gente, eles gostavam dele, nem tão-pouco o levavam a sério. O Tom foi por isso “deportado” para a Finicisa para se verem livre dele, o que trouxe a recíproca vantagem de ele também quase se ver livre deles. Lembro que, sempre que podia, não falava inglês, embora o soubesse falar bastante bem. Mesmo o nome das terras inglesas ele aportuguesava pronunciando-as, ostensivamente, à nossa moda. Dizia sempre Arrogáte à portuguesa e nunca Harrogate à inglesa, com agá aspirado e tudo.

 

Ficou célebre o Tom pelas sua excentricidades. Inebriado por uma liberdade professional que nunca tinha tido em Wilton, banhado pelo Sol quente e mergulhado na cerveja fria, delirou com o trabalho, pondo em prática ideias recalcadas que agora e aqui conseguia pôr em curso a seu bel-prazer. Atenção, não era burro nenhum e gostava de usar a sua cabeça! O que ele tinha eram ideias a mais para o tamanho daquela cabeça que tinha em cima dos ombros.

 Em Leelhom fazia o seu vinho a partir de rosas do seu jardim, já que aí as uvas não tinham chão nem Sol capaz. O pessoal fabril, mal acostumado, ria-se das suas incursões nocturnas à Fábrica onde ele aparecia pela noite, de longos calções e chapéu colonial, para acabar ou encetar ansiosamente qualquer ideia que lhe viera ao caco, enquanto enchia o depósito com super plus ou .... bock. É claro que àquelas horas já vinha bastante tocado, mas vertical, com 99% de líquidos activos e um inócuo 1% de sólidos inertes no papo.

 

 A Profabril com o seu Agente-Técnico Carlos Ferreira e o seu fiscal de obra Louro seguiam de perto, com o maior zelo e competência, a obra. Uma vez por semana vinha cá o Eng. António Cadima, como eles um bom amigo e excelente companheiro, que uma das vezes trouxe a Mulher e as duas filhotas para a Serra, onde todos se integraram imediatamente na família que nós constituíamos.

 

 E assim, já nos fins de 1965, antes da inauguração oficial, com meia dúzia de gatos pardos, se produzia em Portalegre o "Terylene" numa pequena unidade de produção que gradualmente foi expandindo, aumentando e diversificando a produção de fibras. O polímero, muitas vezes de segunda escolha, para português fiar e para português lixar, vinha da casa mãe na forma granulada (pellets), metido em sacos de plástico que frequentemente se rompiam e espalhavam vazavam pelas ruas e pelo chão de toda a fábrica. Só para tentar manter os pavimentos, interiores e exteriores, limpas gastavam-se inglórias fortunas, mesmo sem falar no valor nada desprezível dos grãozinhos.

 

Mas, para mim e não só, o arranque da fábrica e, mais tarde para minha desgraça a sua vida quotidiana, trouxe problemas angustiantes que não mais esquecerei.

 

Os minúsculos “crimpers” (frisadores) P. Brotherhood “mordiam” os bordos do “tow” (cabo) por mais que se afinassem, passasse a unha, rodassem ou mudassem as cheek plates” (bolachas).

[Bolachas foi uma tradução livre minha que, mais tarde, os espanhóis da Nurel, em Zaragoza, traduziram para “galletas”].

 

 Num sobe e desce de escadas permanente, era frustrante chegar cá baixo, à entrada das estufas, ver o Collins e todo o aglomerado de gente feita entendida a esticar, com um estalido característico, o tow quentinho acabado de cair no tapete da estufa, abanando a cabeça a dizer: “no good. Bloody Hell!”  Isto alguns dias e noites a fio, até ao desespero.

Então, decidiu-se mandar vir cá um velho “foreman” de Wilton, cujo nome lamentavelmente não recordo, fleumaticamente inglês e calejado por longos anos de experiência. Sem sequer mandar abrir a boca e mostrar a língua aos frisadores, viu logo que os rolos vinham uns cagagésimos a mais do que o indicado nas há muito alteradas especificações que ninguém se lembrou de transmitir ao fabricante nem a nós, e nem tão-pouco as apontou nos desenhos foleiros, cada um do seu tamanho, que nos eram fornecidos. Quase que apostava que ele já sabia muito bem o que vinha encontrar e se calou muito caladinho para não perder a passeata. 

 

Houve que ir a Alverca, às OGMA, (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico) onde, por especial favor (lá está) accionado por Manuel Fino, eu e ele fomos rapidamente atendidos pela mais alta hierarquia, e o enigma lá se resolveu depois de uns dias muito mal passados e de umas noites pessimamente dormidas.

 

“Bastards”, ainda hoje se ouve a minha voz nos ares ingleses quando por lá troveja. Com o decorrer dos tempos, os mecânicos afinavam carinhosamente o pino de entrada dos frisadores à certeira martelada, enquanto os operadores mais zelosos o ajustavam com um delicado tubo galvanizado que andava pelo chão, escondido atrás, junto a eles.

Pouco depois, novo problema.

 

Agora era a germânica prensa de fardos Lindemann. Um conta-rotações de comando das garfadas de alimentação da rama, avariou logo à nascença. Não havia reserva, não se podia fazer fardos. O Collins desesperava-nos porque não entendia que não se conseguisse ter cá outra  peça na volta do correio. Recordo que, na altura, a Alfândega, só por si, com toda a sua burocracia, carimbo aqui, carimbo acolá, era um obstáculo que os ingleses, na sua maioria, nunca sentiram na sua terra e portanto não entendiam.

 

 Uma noite, ambos pegajosos, o Collins com os copos de Borges ***** e eu com o sono, chateámo-nos por não vir o estupor da peça, para, no outro dia, logo ao pequeno almoço, nos abraçarmos ainda mais amigos.

 Os cortadores Speakman, extremamente engenhosos, diga-se, foram, durante toda a sua vida e até virem os Lummus (estes, uma espécie de ovo de Colombo), outro ponto de origem de aflições e desespero. Tinham de estar muito afinadinhos senão tínhamos a fita da fusão, dos  multicomprimentos e dos “overlengths”. Toda a gente dizia “overlengths” e uns raros, em vez de multicomprimentos, diziam “multilengths”.

 

Afinados ou não, mal entrava, lá pela noitinha, um novo turno de serviço, certos homens do laboratório, quando vinham cansados de casa e queriam ler o seu jornal ou dormir pegados sobre a bancada, anunciavam da sua cátedra que os cortadores estavam a dar fusão. Magister dixit. Toca a afinar, afiar ou mudar as lâminas, rodar ou mudar as pedras, mudar as almofadas de borracha, até lhes passar o sono e atirarem cá para fora com um resultado ainda estremunhado. Vieram os Lummus e, embalados pelo anterior procedimento, continuou a aparecer fusão, a deitar-se fibra pró lixo e a esperar horas por novos resultados.

 

Quero afirmar que os cortadores Lummus foram gravemente difamados, pois não podem dar fusão mesmo que lhes ponham lâminas piores que facas de cozinha muito mal afiadas. Se cortam, cortam, se não cortam abana tudo, cai a casa, mas não cortam mesmo.

 

Para daí lavarem as mãos e continuarem o descanso, começou a aparecer a chamada fusão incipiente, com C, uma espécie de sero positivismo da época, que só via quem dizia que via ou lhe apetecia ver. “Olhe, olhe, veja aqui! ” Ora, não há nada que não seja incipiente, com C, pois incipiente, com C, é tudo o que começa. Quem olhava e não podia ver o que estava a começar, se é que estava, abanava a cabeça levemente, arregalava um pouco os olhos e aceitava, pouco convencido, o veredicto premonitório e sentia-se insipiente, mas com S. Um cabeludo, a quem caiu o cabelo aos oitenta anos, foi um careca incipiente, com C, desde que nasceu até aos setenta e nove anos.

 Quando começava a desaparecer a fusão, chegava a vez dos ataques de inestirados. E lá estavam eles, de facto, rosadinhos e palpáveis no imaculado e redondo filtro de papel com que os homens do laboratório calavam as bocas dos mais cépticos.

 

(Será, penso eu agora, que havia batota e alguém tinha inestirados guardados num frasquinho para polvilhar nas ocasiões?).

 

Toca a parar, apalpar, sem maldade nem ofensa, todas as superfícies, desde a Portaria até à Vargem, fazer nova ensimagem, mudar o banho, alagando a ribeira de espuma, desinfectar as tubagens, sei lá eu, enquanto os crónicos ensonados passavam pelas brasas, terminavam o jornal ou acabavam de ouvir o relato. Quero acentuar e deixar bem claro que havia muita gente no laboratório com procedimento profissional digno a quem não se aplicam nem de longe estas palavras e a quem eu, no entanto, peço me desculpem se julgam que os estou a meter no mesmo saco. Esses, muito melhor que eu, sabem a minoria de quem se fala.

 

 A indústria têxtil portuguesa quase toda ela, a de lanifícios e a algodoeira, absorvia a produção que foi crescendo ao longo dos anos.

 

O Joe Collins e o Bob Aykman estavam cá para assistir à fase de arranque. O Joe ligado ao processo de fabrico, o Bob mais ligado à gestão, embora fosse metendo o seu bedelho nas duas coisas. Passaram cá uns meses.

Vivíamos, como disse, na Estalagem da Quinta da Saúde, mas o Bob Aikman, não por ser escocês, mas como quadro superior, foi para a Estalagem de Castelo de Vide, coitado do homem, onde se enfrascava intensamente sem companhia, a não ser a dos copos, sem ter quem o amparasse e metesse a chave no buraco certo da porta certa do quarto incerto de que ele esquecera o número.

 

O Bob, desconfiado como todos os britânicos com as nossas comidas mediterrânicas, estando só e sem tradutor gastronómico, atirava-se por precaução aos ovos que até ele sabia confeccionar. Em dada altura, sentindo dificuldades na tradução e quando já tinha tentado e repetido os estrelados, os mexidos, os escalfados e os cozidos, veio ter comigo, na fábrica, e, de lado, perguntou-me o que eram ”ovos à escolha”, que ele não encontrava no dicionário, e se tal era coisa que um escocês pudesse comer.

 

O alcoolismo fê-lo passar vexames, estragou-lhe a carreira, destruiu-lhe a família e encurtou-lhe a vida. Recordo-o no dia em que chegou, enregelado, enfiado no seu sobretudo com a gola subida e roído pelo desconforto, a olhar um tanto curvado, através das janelas baixas da casa velha e com as lentes dos óculos embaciadas, a chuva torrencial que se despejava em cântaros gigantescos, como ele nunca vira na sua velha Escócia, onde chovia mais que bem, mas em penicos normais.

 

Um dia, já feitas as pazes com a natureza e mais confiante na comida, mandou vir a Norah, sua Mulher, uma jóia rara, mais os dois filhos ainda muito pequenotes. Deixaram o protocolo, fica-te Castelo de Vide, e subiram a Serra e vieram juntar-se a nós na Quinta da Saúde. Passaram lá uma semana intensa de bom convívio e recordo, ainda sensibilizado, a Norah, de lágrimas sentidas a soltarem-se-lhe dos olhos, a dizer-nos adeus, quando teve de regressar.

 Lá em cima me instalei, como atrás disse, desde o dia 15 de Agosto de 1965. Já lá estavam há muito, cansados de seis meses de Sol contínuo, o montador da fiação Peter Brotherhood, o Peter Chilman, a sua Mulher Nancy e o filho de três anos e pouco, o terrível, e ainda hoje para todos nós célebre, Nicholas.

 

 Chegou na altura o montador da prensa Lindemann, mais velho que todos nós, o atarracado Markus, muito calado mas de humor raro e incisivo, com quem convivemos agradavelmente. O Peter, chauvinista ao extremo, geneticamente xenófobo, suportava-o. Para agravar, o Markus, além de não ser inglês, era, para cúmulo, alemão.

Um dia, Markus levantou-se ao toque regimental do despertador, precavidamente sempre atestado com a corda toda. Fez a barba na sua cara  grande e redonda, lavou-a e esfregou com vigor o seu enorme cachaço recto, arranjou-se e abriu de par em par a janela do quarto. 

 

“Aber ... mein Gott!”, a bela paisagem habitual não estava lá, os pássaros, já seus conhecidos, não chilreavam como sempre faziam. Estranho?! estava ainda uma noite escura como breu, não se via um palmo. Eclipse do Sol, terá ele discorrido. Com o despertador na mão, aproximando-o do candeeiro, e foi ver e rever as horas. “Scheisse”, três da matina! O safado do Nicholas, conforme depois se apurou sem grande esforço, durante uma avassaladora incursão diurna ao seu “Bunker”, havia rodado o ponteiro do despertar para aquela hora, que o acaso quis fossem as três.

O Nicholas não parava, corria velozmente, sem nunca cair, todo o dia dum lado para o outro, muito silencioso nas suas sandalitas de sola de borracha. Atacava e destruía indiscriminadamente, como um violento tornado, tudo por onde passava. Entrava lesto e de rompante na cozinha e, estendendo o braço, felizmente ainda curto, sobre todas as mesas derrubava a frascalhada do azeite, do vinagre, do que fosse. Varria os pratos, partia a louça. O pai, mula, fingia-se zangado, mas no fundo orgulhoso sorria com as façanhas do filho, um verdadeiro Chilman.

 

O Peter era bastante ”peludo” e tinha, coisa rara num inglês, muito pouco, ou mesmo nenhum, sentido de humor. Tinha uma das pernas bastante arqueada e, talvez por isso, o filho saísse assim tão torcido. A Mulher, com o forte e intragável sotaque de Peterborough, gritava permanentemente, vezes sem conta: ”Nicholas, stop it!”  Mas ai de alguém que ousasse ralhar ao miúdo ou mesmo abanar a cabeça em ar reprovativo que o pai, ainda feito mais ”peludo”, saltava a defender a cria como se defendesse um anjo que nunca saiu da sua nuvem, nem sequer alguma vez tivesse feito um chichizinho cá para baixo.

 

Uma noite, um grupo, onde eu me integrava, via televisão. Nicholas sai da cozinha como um relâmpago, depois de, seguramente, ter feito algo demolidor lá dentro. Traz qualquer coisa na sua mão pequenita e gorda. Passa em frente a nós rente ao aparelho e, como quem apaga um quadro na escola, faz deslizar, estridentemente e a alta velocidade, no écran um carrinho “Match Box” com pneus completamente carecas. As jantes ficaram marcadas para sempre no terreno vítreo, sem sinais visíveis de travagem, apesar do tardio e estridente”stop it ” da mãe e do berro engrossado do pai: ”Nicholas! !”  Passámos, desde esse dia, a ver televisão a preto e branco, como até aí, mas às riscas.

 A Nancy levou na barriga uma miúda, made in Portugal, que foi nascer na terra onde nasceram os pais. Vi-a ainda muito pequenina, quando os visitei um dia,  de passagem, na sua casa em Peterborough, e não sei se saiu ao Nicholas ou se veio ainda mais refinada que ele.

 

 Nesse ano, depois dum Verão escaldante e vários meses de seca, começou a chover ininterruptamente até o Collins se ir embora. Uma espessa nuvem pairava todo o dia sobre a Serra e, a partir da Fonte dos Amores, os carros iam devagar e de luz acesa em pleno dia, furando a custo o nevoeiro. O Collins deprimido, e que vinha à espera do nosso reclamado Sol, chamava-nos, quase a sério, mentirosos, ou melhor, “bloody liers”. 

 

Em dada altura veio cá passar uma semana a Doreen, sua Mulher. Vinha, cheia das lamúrias com que o marido enchia as cartas que lhe escrevia, dar-lhe apoio moral e trazer-lhe “crumpet” que ele, indo ao seu pequeno dicionário de bolso, traduziu por ”pão pequeno”. È claro que “crumpet” era um calão lá de cima do Yorkshire, para designar uma coisa que qualquer pessoa, por menos maldosa que seja, pode adivinhar.

 

Uma semana de Sol resplandecente e temperatura amena veio alegrar a sua estada, levantar o nosso humor e, quem sabe, salvar-lhe a vida. A Doreen não acreditava desde agora numa só palavra que o “son of a bitch”  lhe escrevera.

Foi-se embora a Doreen, não sei se algo rosada ou mesmo um nadinha bronzeada, e logo voltou a nuvem, a quem o Collins já chamava ”our bloody cloud”, encheram-se as fontes, transbordaram os ribeiros, inundou-se, como o costume, cá em baixo o Rossio. Não sei se ele mais alguma vez teve a coragem de lhe falar no ”fucking weather” de Portalegre. Sei que, apesar disso, ainda vivem juntos pois já os visitei depois, não esquecendo de lhe levar o Brandy Borges *****, e continuamos a trocar as Boas-Festas todos os anos.

 

O Collins, que cheio de esperança, plantou duas videiras na sua “greenhouse”  em Marske-by-the-Sea, logo a seguir a Redcar, afirmava que Portalegre, à noite, era o cemitério mais bem iluminado que jamais havia visto.

Não sei se o chão da sua “greenhouse” alguma vez chegou a dar uvas, mas nestas coisas o que verdadeiramente conta é a intenção.

 

Não esqueço o razoável café que se bebia na sua casa feito numa obscena máquina italiana que lá e noutros sítios, também respeitáveis, se usava. Não digo o nome da marca para não fazer corar as senhoras nem os homens mais educados. Só lhes digo que tem muito, ou melhor, tem tudo a ver com o tal “pão pequeno” que ele foi buscar ao seu minúsculo dicionário de bolso. Que se lixe a educação: o nome da famosa máquina era Kona, com K, creio eu que para disfarçar.

 

Para descansar um pouco, e deitar umas contas à vida vou ficar-me  mesmo por aqui. Volto já!

 

FIM do VOLUME I

 

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