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LICEU de

ALEXANDRE HERCULANO

  

HISTÓRIAS DO SÉCULO XX                                  

 

PARA OS MEUS COLEGAS E COMPANHEIROS DO LICEU, 

AMIGOS DE TODA A VIDA.  

TAMBÉM PARA AQUELES OUTROS QUE, ANTES OU DEPOIS DE MIM, POR LÁ ALEGREMENTE SE ARRASTARAM E COM QUEM, MAIS TARDE, ALGURES EM QUALQUER SÍTIO, ESTABELECI FORTES LAÇOS DE AMIZADE.

 A VIVÊNCIA COMUM NO ALEXANDRE, SÓ POR SI, APESAR DE DESFASADA NO TEMPO, AINDA HOJE, É UMA ESPÉCIE DE CUMPLICIDADE QUE, DE PRONTO, APROXIMA AQUELES QUE, POR VOLTA DOS ANOS QUARENTA/CINQUENTA, POR LÁ TIVERAM A SORTE DE PASSAR.

 

 

 

 

 

   LICEV de

  ALEXANDRE HERCULANO

       Histórias do século xx

  

INTRÓITO

 

Quando reli umas tantas linhas que escrevinhei aqui há uns bons tempos, mais exactamente em 1991 (já lá vão hoje dez anos!), sobre a aventura de todos aqueles anos do Liceu, o meu pensamento entrou, uma vez mais e como nessa altura, em violenta ebulição.

Em cadeia, não na cadeia como muitos desejariam e outros que não me vêem há muito poderiam julgar, mais recordações foram surgindo, como se eu apenas as tivesse vivido meia dúzia de anos atrás.

Este modo de reavivar recordações é, como dizem os médicos, os para-ditos e até os entendidos, um sintoma típico dos escleróticos que ignoram o presente e mantém tanto mais vivo o passado quanto mais longínquo ele está. E então, indo atrás, correndo á frente, como qualquer pintor perante a sua obra, não resisti a dar uns retoques e a acrescentar mais umas pinceladas, aqui e além, neste quadro que eu nunca irei conseguir acabar.

Reconheço, o que é um bom sinal, um certo entupimento e endurecimento vascular, mas o facto de manter bem vivas dentro de mim piruetas e facécias dos tempos mais chegados deixa-me um certo conforto e concluo que, pelo menos, continua a dar-se em mim uma satisfatória irrigação cerebral que me permite deduzir que ainda estou vivo, atento ao que me convém e desatento ao que, deliberadamente, procuro ignorar.

Sim, porque há um tipo de curiosidade que abomino, como essa de me interessar por aquilo que não me interessa, como diria aquele senhor muito conhecido que julgo ter sido, já não sei, se da polícia ou se da pulhice francesa. M. de La Palice era como lhe chamavam e  assim ele mandava imprimir em floreados cartões de visita.

Também de Leonardo da Vinci, que foi excepcional em tantas e tantas coisas e de uma curiosidade extremada, não soa que se tenha debruçado, um pouquinho sequer, sobre as  eventuais jazidas de petróleo na Afurada, nem sobre a influência do escaravelho da batata na erosão provocada pelas marés vivas nas dunas da Praia do Cabedelo.

Leonardo, um génio como eu, tinha muito mais em que pensar e eu bem entendo o seu desinteresse, pois a única diferença que nos separa é que ele, além de pensar muitíssimo melhor, fazia-o de longe mais depressa do que eu e outros palermas da minha estirpe que não sabem sequer pregar um prego e que não são, olhando à minha volta, tão poucos como isso.

Voltemos depressa às recordações antes que digam que estou, pelo menos, a descambar e a um passo da caquexia, o que também não é bom.

 

 

 

OS PREPARATÓRIOS

 

 

Antes de entrar no Liceu, já sabíamos de cor e salteado a tabuada, as linhas dos comboios, incluindo o ramal de Cáceres e a linha do Tua.

 Conhecíamos as serras e as cordilheiras com se todas tivéssemos trepado e calcorreado.

Como se os houvéssemos navegado, conhecíamos os rios, onde eles nasciam, passavam e desaguavam, com todos os seus afluentes, duma e doutra margem.

Também éramos lestos em fazer contas, tirar-lhes as provas, a dos noves e a real, e a resolver problemas com apreciável grau de dificuldade.

De Portugal e Colónias, que foram, mais tarde e por despacho, promovidas a Províncias Ultramarinas, sabíamos tudo o que convinha e era permitido saber.

Portugal não é um país pequeno, rezavam as cartilhas.

De cada naco das nossas terras, quer de aquém quer de além-mar, sabíamos as áreas até ao cm2.

Conhecíamos as produções, até ao miligrama, desde a batata à abóbora, passando pelo diospiro.

 Enumerávamos as populações com fidedignos números obtidos a partir de censos actualizados quase semanalmente.

Conhecíamos os países com quem, em todos os quadrantes, fazíamos fronteira.

 Recitávamos as capitais e cidades mais importantes, desde A de Alcains até Z de Zambujeira do Mar.

Arrotávamos, como novos-ricos, todas as nossas enormes riquezas espalhadas a esmo por esse mundo fora.

Olvidávamos as pobrezas porque pobreza nunca houve e toda gente tinha a sua humilde casinha muito caiadinha de branco com uma leirinha de terra que dava de tudo, com um burrinho, um carneirinho, uma cabrinha, um porco, um boi, uma vaquinha e muitos coelhos e galinhas.

 Sabíamos onde os nossos nobres antepassados colocaram os padrões, símbolo da expansão da nossa fé e para marcar o local onde desbarataram o infiel gentio que abusivamente ocupava e habitava aquelas terras como se fossem alentejanos em época de Reforma Agrária.

Eu sei lá o que não sabíamos!?

Agora me recordo, e ainda vou a tempo de o acrescentar, que não sabíamos ainda fazer problemas de torneiras, do tipo:

“Se uma torneira leva duas horas a encher um tanque, quanto tempo levam três torneiras, cada uma a deitar a mesma quantidade de água que aquela, a encher uma banheira com pés de leão com um volume igual à do referido tanque.

Admita que:

             a. nem o tanque nem a banheira estão rotos.

             b. não há evaporação.

             c. não está lá dentro ninguém a chapinhar.”

Este tipo de problemas ia, por muito tempo, dar muita luta, primeiro nos últimos anos do Liceu e depois em todos os anos da Universidade, sem nunca se chegar a um verdadeiro consenso.

Da nossa História e por ordem, sabíamos as mais importantes datas, quase até ao segundo, palrávamos por ordem o nome dos nossos reis e os seus cognomes e admirávamos a coboiada dos seus feitos.

Envaidecia-nos a nossa epopeia das descobertas, as cruzadas e as nossas inúmeras e retumbantes vitórias, sempre em inferioridade numérica, na luta contra castelhanos, infiéis, mouros ou sarracenos, fossem eles de preferência pretos, só, mas só, para dilatarmos a Fé e o Império e darmos novos mundos ao mundo.

Se a alguém mal fazíamos, a isso éramos obrigados na legítima e nobre defesa dos valores da Fé, quase sempre, iluminados pela graça divina, como aconteceu em Ourique e S. Mamede.

Matávamos a torto e a direito, mas só os que tropeçavam e caíam, por azar ou distracção sua, nas lanças e arcabuzes dos nossos bravos e pacíficos soldados que, benzendo-se e rezando uma oração, logo lhes davam sepultura onde enterravam uma cruz bem aguçada na ponta.

E depois, como hoje, éramos muito honestos e prezávamos a honra acima de tudo.

Se alguém, sem querer, faltasse à palavra dada, deixava tudo e metia-se logo a caminho, a pé e descalço, com uma corda ao pescoço, levando consigo a mulher e a filharada, para ajoelhar-se aos pés da vítima da sua inocente patranha.

 A vítima, comovida e de voz lenta e grave, dizia, com o braço direito estendido horizontalmente no ar e a mão desse mesmo braço aberta com a palma voltada para baixo:

“Ide em paz Senhor e com Vós levai essa excelsa Dama e esses Vossos inocentes e tão ilustres descendentes. Levai ainda, por graça Vossa, esta missiva ao Vosso amo e esta broa de Castela mais este garrafão de vinho tinto de Aragão pró caminho! Ide pois Senhor e que Deus Vos acompanhe na estrada, que anda por aí muita ladroeira e muito maluco bêbado a conduzir”.

E lá se safava o tão honrado aldrabão, comendo-lhe a broa e bebendo-lhe o vinho.

Por humana e imperiosa necessidade, desatava e desenrolava a missiva e, sem abusivamente a ler rasgava-a em quatro, para logo se agachar atrás dum pinheiro manso no meio de bravas silvas e macios fetos, a que se limpava.

Dávamos poucos erros, um máximo legal de quatro, se não fossem muito graves, em cada 100 palavras.

 Já dividíamos orações e recitávamos os pronomes, as preposições e também todo o tipo de advérbios e conjunções.

Sabíamos um pouquinho bem bom de quase tudo e, se fosse agora, tínhamos entrado directamente numa qualquer universidade, pública ou privada, que decerto estaria ali à mão, nem que fosse num dos seus dispersos pólos que proliferam como Lojas do Lidl ou dos Trezentos.

 

 

 

 

          LÁ DENTRO,

COM CENAS DE CÁ DE FORA

 

De gravata, entrámos  em 1942 no Liceu de Alexandre Herculano que ficava no Porto, na Avenida Camilo quase em frente à Calandra do Bonfim.

Estava-se no auge duma guerra e numa época de “ismos” exacerbados que ainda hoje germinam, vegetam e proliferam por todo o mundo; todos eles na melhor das intenções de quem os cria e amamenta, como se tem verificado e a história nos conta: nazismo, fascismo, franquismo, estalinismo, comunismo, bolchevismo, capitalismo, leninismo, salazarismo, paludismo e até campismo, sem esquecer o catecismo.

 Actualmente, nesta minha nova pincelada impressionista de fins de 2001, estamos numa fase a que eu chamo de cataclismo que, como todos os outros ismos, conduz inexoravelmente os mais fracos ao abismo, os mais fortes ao despotismo, os miseráveis ao autoclismo e todos, numa orgia global, ao alcoolismo.

Entrámos, repito, de gravata e pela grande porta da ala nascente, a ala destinada à miudagem chilreante vinda da 4ª classe da Escola Primária.

Eu, o meu "compadre" Cardoso, o meu "sócio" Rui, os irmãos Calheiros Lobo, o Reis, o Sacramento e tantos outros vínhamos também da 3ª classe, mas das miseráveis e pestilentas carruagens dos comboios a lenha que, encarneiradamente, nos transportavam e descarregavam em Campanhã. Aqui também se descarregava gente vinda de Cete, Ermesinde e Rio Tinto e, já não me lembro bem, se alguém de Recarei.

O Mendo (Adalberto Paulo da Fonseca Mendo, cujo nome artístico é Paulo Mendo) e o irmão mais velho, a simpatia do Sérgio, vinham de S. Pedro da Cova e o Ribas (Pedro Villadelprat Ribas) e o Vítor (Vítor Manuel Matos Nunes Pinheiro) de Gaia mas, coitados, uns e outros, viessem donde viessem, de pasta na mão, eram calcados e esborrachados dentro dos saudosos eléctricos com meia dúzia de gatos a encher os assentos de palhinha e uma multidão no corredor em fila tripla agarrada uma à outra e/ou às pegas de couro suspensas, aproveitando alguns para bifar carteiras e outros para fazer apalpanço.

Mas a maior parte da gente ia pendurada em cacho nas plataformas, evitando os postes e o cobrador. Muito ajudavam eles o eléctrico a travar, arrastando os pés no chão nas ruas mais inclinadas.

Para sair, pediam por favor a alguém, a quem agradeciam, que lhes puxasse a longa correia redonda da campainha. E lá furavam, furavam, sempre agarrados à pesada pasta dos livros, a gritarem aflitos deixem-me sair, deixem-me sair.

Cumpridores, saíam de casa dois ou três eléctricos mais cedo e nunca chegaram atrasados mesmo nos dias em que saltava uma e mais vezes o indecoroso e provocante trólei.

Ali passámos três inocentes anos de prematuração, ao cachaço, ao biqueiro, aos berros, ao palavrão incipiente e às correrias de esfolar joelho e partir dente.

Para impor o respeito dentro das salas de aula, enquanto não vinha o professor, eram escolhidos, a olho e pela estatura, os tipos mais brutos para chefe de turma.

Para o exterior, havia o senhor Queiroz que, embora tivesse de cofiar frequentemente o seu farto bigode, ainda tinha tempo para tomar e fazer de conta.

O senhor Pereira não tinha bigode nem tomava conta porque davam mas era conta dele. Enquanto, fumegante, limpava do suor desde a testa até ao pescoço, vendia, sempre possesso, os artigos de nosso consumo corrente: cadernos diários, sebentas, livrinhos de risca ao meio para significados, folhas de exercício, mata-borrão, papel costaneira, afiadeiras, lápis nº1, 2 e 3, safas e inclusive as senhas para a cantina: só sopa 8 tostões, menu completo três e quinhentos.

Se por desleixo se por má gestão, o Pereira não tinha esferográficas, nem pilhas para máquinas de calcular; nem sequer por ali havia uma caixa Multibanco onde se pudesse recarregar telemóveis ou levantar vinte e cinco tostões.

Na Secretaria, pagávamos, pontualmente e sem discutir preços, as propinas pelo buraco do guiché onde gradualmente fomos chegando até que, lá para o 4ºano, o ultrapassámos.

O Almiro Dias Leite de Sampaio Morais, meu querido e sempre leal amigo e companheiro até ao fechar da vindima na rua dos Bragas, sempre chegou ao guiché desde o 1º ano, mas foi aí que começou curvado a lixar a coluna, quando nós outros ainda nos íamos esticar mais dois ou três anos, assentes nos bicos dos pés, como se fossemos pequenos bailarinos.

Como acontece praticamente ainda hoje em todas as secretarias portuguesas, também na do liceu havia um senhor Silva que usava manguitos pretos.

Todos eram senhores, o que eriçava, rígidos e perpendiculares à pele, todos os pêlos do Filinto, com despeito recalcado e rancor mal escondido, pois não eram senhores e muito menos doutores: ele próprio, o Caga-baixinho, o Pedrosa, o Totó, o Mesquita, o Cebolinha, o Curado, o Calheiros, o Cobeira, o Lopes, o Aristides, o Balacó, o Serafim Pinto, o Luizinho, o Mário, o Figurão, o Ilídio, o Óscar Lopes, o Sena Esteves, o Malpique e outros mais a quem todos fazíamos vénias orientais, atingindo algumas os 90 graus, e nos davam as aulas.

A D. Ema, a única fêmea docente, (com O´), de que me recordo, também não era sequer senhora embora fosse muito decente, (com É). Era, simplesmente, a Ema e era tida por alguns cabulões como má e por outros, ainda mais cabulões, devassos, ordinários e animalescos, considerada uma cabra.

Nas paredes de todas as dependências havia pendurados, à nossa frente e por trás do estrado do professor, retratos do Carmona fardado, com um pincel de caiação bem seco pousado em cada ombro, e de Salazar à paisana e de perfil. Esta era uma característica muito sua, pois, como se viu, na sua vida em tudo, sempre evitou ficar de frente e, preferencialmente, por precaução e manhosice, em tudo esteve por trás.

Deste, nos corredores, havia, escritos em azulejos, pensamentos e frases lapidares do tipo: “No barulho ninguém se entende, é por isso que na revolução ninguém se respeita”.

Já aqui estava o estupor do manholas a pensar no ainda longínquo 25 de Abril de 1974 a que, por ter caído duma cadeira de lona e de armar, não pode assistir para seu consolo e eterno descanso.

Jaz hoje, estátua acima, estátua abaixo, nas terras do Dão, no Vimeiro, em Santa Comba, onde foi gerado, parido e criado até fazer a primária e ir pró seminário fazer companhia ao Cerejeira que era um santo rapaz de quem ficou amigo, mas em quem nunca inteiramente confiou.

Quem mais se lixou com aquela maldita queda foi o afilhado, um dos fundadores da Mocidade, que lhe sucedeu e que, após um curto período de Primavera, com conversas em família e evolução na continuidade, apanhou com toda a ressaca dum longo Inverno de 48 anos de gerência rigorosa.    

Aliás, deve ser já sina nossa, pois as gerências que se lhe seguiram, por nós escolhidas nas melhores e inocentes das intenções e mesmo, em aliciantes e justificados casos de encher o papo, nas piores, só têm feito merda que, além de cheirar tão mal ou pior que a outra, ninguém apanha nem deixa tão-pouco incinerar. E, ainda mais grave, esta agarra-se ao corpo e faz tremendas comichões. Nessa altura, a merda aparecia já espalhada depois de cuidadosamente escolhida, peneirada e cheirada lá entre eles. Era uma espécie de “Pronto a Comer” dos nossos mais recentes anos de sociedade de consumo.

Vivíamos, assim, atordoados, acomodados e conformados. Um café custava, como o jornal, cinco tostões e as pessoas guardavam o dinheiro no colchão de folhelho ou, bem lá ao fundo, numa gaveta do psiché, muito bem escondido dentro de um ou dois pacotes de algodão iodado e no meio de rebuçados de avenca.

Quando concluímos o 3º ano, ainda imaturos, mas já merecedores de uma justa promoção social, mudámos da ala nascente do Liceu para a poente.

Afastámo-nos, indiferentes na altura, do indecoroso muro que permitia enxergar, galgando com a vista a rua de António Carneiro, as miúdas mais atrevidas que frequentavam o Rainha Santa Isabel e vinham ao cimo do seu quintal, do lado de lá, catrapiscar os mais espigadotes postados do lado de cá a fazerem de conta, elas e eles, que não se viam. A essa agora chamo eu, passados tantos anos de casamentos felizes, a Ala dos Namorados.

Da nossa nova ala, a poente, avistavam-se as traseiras da casa do Totó e as de um senhor da Belarte que palrava ao microfone anúncios de primorosa rima e sumarento conteúdo, (Se um bom relógio quer comprar, vá à Relojoaria Aguiar), nos intervalos do Sá da Bandeira e que tinha, vista cá de cima, uma mulher muito boa, cobiçada pelos tais espigadotes que lhe atiravam baixinho dichotes ordinários. Muito boa, naquele tempo, queria dizer com um grande rabo e duas enormes tetas.

Hoje, diz-se que uma mulher é muita boa quando ela é bulímica ou anoreticamente bela. Antigamente, as mulheres comiam-se. Hoje, depois de bem chupadas, rilha-se-lhes caninamente os ossos. A pouca carne que estas têm, além de dura e fibrosa, sabe horrivelmente a tabaco, ainda por cima uma mistura promíscua e pestilenta de várias marcas.

Cortava-nos o barbeiro, pelo menos de quinze em quinze dias, o cabelo curtíssimo que, sendo já de si rebelde, mais indomável ficava. No fim da tosquia, rapava-nos à navalha, e até ficar polido, o cachaço o qual, depois de soprar e espanar, polvilhava com uma espécie de pó de arroz branco a cheirar a Lauroderme.

Desapertava-nos do pescoço a farta e longa fralda que sacudia fortemente com estalidos secos, dando-nos sopradelas de acabamento e passando a escova, enquanto preparávamos os 25 tostões e olhávamos pelo espelho retrovisor que ele gentilmente segurava, rodando e inclinando nós a cabeça em todos os ângulos, para ver o acabamento.

Começámos a deitar carradas de fixador Nally que escorria esverdeado até meio das nossas brancas e macias faces e deixava o cabelo lambido e muito bem colado ao couro cabeludo, por cima do crânio, mas sempre com pelo menos três teimosos cabelos espetados em pé, no cocuruto. Veio mais tarde o Brylcream que, além de caro, não fixava tão bem e escorria ainda mais que o outro até chegar ao queixo e pingar no chão.

Não havia ainda laca em “spray”, (nunca cheguei a saber que fixador tipo merda seca e tão adesivo usava o Zé Afonso, de seu nome José Afonso Morais Santos), e as senhoras, que não usavam brilhantina, apesar de usarem cabelo comprido, quase tanto como o que usam os homens de hoje, por falta da laca, usavam rede que lhes ficava muito bem e as tornava muito atractivas.

Havia também algumas mulheres que usavam o cabelo à garçonne, umas já lésbicas, outras quase e as que se casavam batiam desalmadamente nos respectivos maridos a quem chamavam de corno, para cima.

As mulheres do povo, (nessa altura já havia povo), usavam puxo seguro por ganchos e as meninas mais finas rabo-de-cavalo atado com um elástico como hoje usam os drogados, os arrumadores de automóveis e outros artistas plásticos.

O buço principiava a despontar e cada um de nós lá se ia amanhando como podia com as Nacets rombudas já usadas e amoladas várias vezes pelo pai (os tempos eram maus) e agora reamoladas por nós (os tempos não eram melhores) num copo de vidro bem humedecido.

Apesar da pequena e tenra área a desbastar, não era raro que, com a pouca prática, a qualidade bera das lâminas, a calvície do pincel e ainda as características pouco cremosas do stick da Ach. Brito, nos apresentássemos muitas vezes cheios de golpes que nos enchiam de orgulho pela masculinidade que imprimiam e que ostentávamos com mal escondida vaidade.

Não raramente, e ainda mais vaidosos, apresentávamo-nos em público com bocadinhos de papel higiénico de uma só folha individual, tipo guardanapo de pensão barata, agarrados aos golpes para estancar o sangue! Os poucos botas-de-elástico que fumavam de onça usavam para o efeito mortalhas Zig Zag.

Enquanto o buço escurecia e engrossava, outras regiões menos expostas começaram a cobrir-se de pêlos, o que, de início, preocupou muitos de nós que, na sua inocência, recearam estar a regredir para macaco, contrariando Darwin, e os que diziam que fomos moldados no barro a partir duma costela dum tal Adão que adorava maçãs e vivia com a mulher e uma cobra debaixo duma macieira.

A tal costela era certamente das falsas como, vejam-se os resultados, tudo leva a crer.

Adão, não tinha guarda-fatos e vestia-se como o pai, o conhecido Pai Adão, conhecido estilista de tangas foliáceas. Nas festas de S. Caetano, em Vilar do Paraíso, ele e a tal senhora com quem maritalmente vivia, punham uma folha larga de videira à frente, enfiada num fio dental muito estreito que passava por trás e lá iam eles por aí acima.

A expressão “andar à Pai Adão” tem aí a sua origem e equivale hoje a “vestir Dior”, “vestir Channel”, etc.

Retomemos a conversa da propagação da penugem.

Que eu saiba, em nenhum tal regressão teve lugar, embora não possa afirmar que, no meio de tantos, não tivessem aparecido uns bons e conceituados macacões, na acepção lata e justa do termo, porque, como se sabe, ser macacão implica isso mesmo: ter lata e, de preferência, muita e/ou grande.

Começaram então os primeiros engasganços com os Três Vintes, os Português Suave, os Definitivos e, oh pobreza! os Provisórios. Os Unic eram um luxo inacessível e os Fortes uma miséria asfixiante. Os Tip-Top, um enorme logro, tinham aí uns dois centímetros de tubo sem tabaco na ponta de aspiração.

Quem na época andava às priscas conhecia-os por cigarros Filhos da Puta e não pelo seu verdadeiro nome. O cognome vinha da expressão irreprimível sempre soltada pelos diligentes profissionais da apanha, perante a desilusão do vazio da tal ponta oca.

Havia entre nós uns mais crescidos, mais pretensiosos e ainda mais parvos, que fumavam cachimbo que, ainda por cima, se estava sempre a apagar e a engolir fósforos. Outros, tão idiotas ou mais, usavam boquilha como a Marlene Dietrich.

Nesses tempos, era sinal de virilidade “tirar duas” nas chamadas salas de chuto durante os intervalos das aulas, metendo ao décimo minuto, com a campainha tipo trriiiim a tocar estridente, a prisca mal apagada e ainda quente no bolso, pró próximo intervalo. “Tirar duas” não tinha nada a ver, nem por antinomia, com “dar duas”.

Mais que hoje, creio eu, havia os cravas que fumavam por necessidade à custa do tabaco do alheio mas, honra lhes seja feita, eram moderados no pedir, pois muitos se limitavam a pedir “dá-me meita” ou “deixa-me tirar duas”.

Também, como hoje, havia os cravas sistemáticos que o eram por terem nascido assim. Com esses, então e agora, não há nada a fazer.

Hoje, fumar é efeminado e tem mesmo sinal contrário ao do que então tinha. Auguro não vir distante o tempo em que o homem machão se esconda para fumar, não vão surgir interpretações erradas pouco prestigiantes e confusões embaraçosas para o sexo a que ele se orgulha de pertencer e a que alguns teimam em chamar forte.

A sala chamava-se de chuto porque aí se pontapeavam pedras, canelas e cuzes e, às vezes, certos livros dignos de tal.

Havia cá fora, no pouco ar livre que na época estava disponível, um campo de futebol sem balizas, sem marcações, sem bandeirolas e sem balneários, mas com um excelente piso de saibro gasto cheio de covas e com pedras soltas de cascalho a fingir de relva cinzenta.

Jogávamos aí, todos em monte, furiosamente com bolas de trapos envoltas em grosseiras meias que as senhoras celulíticas mais bojudas sustentavam com as presilhas da cinta e as mais jovens ou magricelas com ligueiros ou simples ligas elásticas em argola um pouco acima do joelho.

Houve quem tentasse fazer as bolas com meias de seda, mas a seda rompia-se muito e era muito escorregadia prós guarda-redes. Se fosse hoje, e se se vivesse ainda mais miseravelmente do que então, far-se-iam obscenas bolas duplas a partir de collants de nylon.

Uma vez por festa, lá aparecia uma bola de borracha que algum ricaço mais estroina comprara no ”Pirata”, lá no cimo de António Carneiro, já no Largo do Bonfim.

Se a bola se furava, e isso não demorava muito, o jogo continuava até desaparecer todo o ar do seu interior e o último naco de borracha.

Vem aí o reitor!...em certas alturas gritava alguém em surdina. E lá parava o jogo com todos a disfarçarem o crime de jogar à bola, fingindo que apanhavam minhocas pró professor de Zoologia ou andavam às pedrinhas para o de Mineralogia.

O reitor (Barbosa) passava, reverenciado, de mãos atrás das costas, a olhar pró chão e a todos fingindo ignorar sem nunca sequer dizer "Hum".

O jogo recomeçava imediatamente com bola ao ar, mal ele desaparecia lá ao fundo muito contente por haver ordem, ninguém brincar e ele, severo, nem um Hum! ter rosnado.

Vigilante, lá andava também o Ovo de bata cinzenta, confundido com o relvado, a cumprir o seu dever de árbitro auxiliar nas muitas escaramuças que se geravam e de verificar se alguém partia um vidro com a miserável bola de pano ou com alguma pedra solta do terreno de jogo.

A nossa promoção à ala poente amainou-nos um tanto o nível da gritaria de alta-frequência, não apenas por estarmos mais crescidinhos, mas porque, nessa altura, a vergonhosa rouquidão típica da idade atingiu as nossas gargantas que passaram a emitir sons como os das gaitas foleiras compradas na romaria do Senhor da Pedra, roufenhas e desafinadas, com notas perfurantes do topo da escala, tipo menino de coro mal capado, ou grossos falsetes de barítono bem comido e melhor regado.

Tudo isso, ainda era o resíduo da época da ala nascente onde tudo falava fininho e andava de calções, mas onde já se viam pretensiosas calças à golfe e até parolas calças compridas, algumas com ceroulas com fitas de atar por baixo.

Não admira pois que, por essa altura no Canto Coral, o Celso e o Regadas aumentassem a pedalada no harmónio para que a própria chiadeira do instrumento, pessimamente lubrificado diga-se, abafasse, tanto quanto possível, esse coro de garnisés peneirentos cujos sons, inevitavelmente, lhes iriam afectar de forma irreversível os seus já enrijados tímpanos.

O bom do Regadas nunca usou a sua curta mas, mesmo assim, dissuasora bengala, (que pendurava na pega lateral do harmónio depois de se sentar em frente do teclado), para chibatar as vozes horrivelmente dissonantes como era a minha.

O Celso, que tocava, e bem, violoncelo na Sinfónica do Porto, nunca trouxe o flexível arco do seu instrumento para, com as suas costas, fazer o que o Regadas nunca fez com a sua bengala. Além de muito bom violoncelista, também não era menos boa pessoa, embora fosse homem um tanto distante e terrivelmente sisudo.

Na cantina, começámos subconscientemente a escolher as mesas servidas pela afável e solícita Candidinha, deixando para os mais imberbes ou assexuados as da já entradota e um tanto rabugenta senhora Augusta.

Com o Rui Borges, o meu velho "sócio" que sempre foi muito precoce em tudo, havíamos mais tarde de entender o verdadeiro porquê da escolha, quando o vimos um dia espolinhado no coradouro, a sul e em frente à cantina, de boina na cabeça deitado na erva e de pernas para o ar, a tentar enfiar por cima das calças compridas, julgo que sem ceroulas, a lingerie da Candidinha em detrimento da da senhora Augusta, num inesquecível delírio de prazer que, no longo sonho dessa noite, o havia de fazer preceder o Neil Armstrong na entrada na Lua em quarto crescente e na saída em minguante.

A nossa entrada no Liceu passou, como disse, a fazer-se em grande pela outra porta também grande a poente, como se fossemos gente. Continuávamos de gravata e muitos continuavam de calções e ameaçavam, convictos, nunca deixar de os usar pela vida fora.

Logo à entrada e à esquerda, na parede estavam pendurados painéis de madeira envidraçados onde normalmente se afixava todo o tipo de comunicações comuns nos estabelecimentos de ensino daquela época: as notas, avisos, castigos, louvores (?!) e os horários das missas, no nosso caso, as do Bonfim.

Hoje, aí se afixam instruções detalhadas sobre o uso do preservativo e dos perigos do sexo de grupo ou de aventuras homo e heterossexuais e se aconselha a não partilhar seringas e a usar apenas das descartáveis, fornecidas gratuitamente, como a metadona, pelo homólogo actualizado do nosso tão esforçado senhor Pereira.

Também lá se continuam a afixar as notas, que oscilam agora entre os 18 e os 20, e que, naquela altura, variavam entre o 0 e também o 20, rondando normalmente o 10. Se ao fim dos três períodos a soma das notas fosse igual ou maior a 29 estava-se passado, com a condição de nenhuma das notas ser igual ou inferior a quatro. O ano ia-se todo ao galheiro se tal acontecesse!

Se, hoje, alguém tirar menos de 18 a qualquer coisa, logo lá vão o pai e a mãe do descriminado aluno onde fazem um grandessíssimo esterco a que, mais que acostumados, já ninguém liga à excepção da besta aterrada do professor que só lhe deu um reles e já muito puxado dezassete.

Ameaçando toda a gente, sovam e cospem espessas segregações na cara daquele grandessíssimo sacana.

Se a coisa aquece e lhes der na gana, furam-lhe também um olho com a ponta aguçada do guarda-chuva, partindo-lhe os óculos e mais pertences, na presença compreensiva do Presidente do Conselho Directivo e do olhar arguto do psicólogo residente.

 A todos se vem juntar uma ou duas assistentes sociais, um representante da Associação de Pais e o presidente da Junta de Freguesia, todos à pressa convocados pelos incontáveis (um por cabeça) telemóveis ali presentes. O padre da freguesia não vem porque isto agora não é coisa que meta padres, como era antigamente.

Naquele tempo, como disse, uma nota, em qualquer cadeira, igual ou menor a quatro dava direito a reprovação a tudo. A coisa era aceite e a mãe “ó filho, pró ano vê lá se começas logo a estudar desde o primeiro dia de aulas que, se passares, o pai dá-te uma bicicleta de pedais”. (havia as de pau, sem pedais).

Normalmente, (também havia entre os professores alguns bons pulhas), o professor que dava um quatro fazia-o “in extremis” e era um homem apreciado e considerado entre os seus pares e até por muitos alunos, que o reconheciam justo e sempre o viram fazer tudo que estava ao seu alcance para ajudar toda a gente.

Em casa do cabulão, que estudava na cozinha mergulhado num horrível cheiro a fritos e com uma lâmpada de 25W bem por cima da cabeça, é que era o caraças quando chegava o pai a casa!

A mãe chorava aos berros já chega, já chega, já chega, não mates o meu menino, enquanto o miúdo levava uma valente sova do seu ascendente directo que o vergastava, vergastava, usando a ponta do cinto onde estava a fivela. Não te metas, não te metas se não queres também levar nas trombas, porque pra mais quem tem “na” culpa toda és tu, meu grande “estapor”.

Não havia os eficientes carros patrulha de agora, mas, no seu giro rotineiro e no seu normal passo pendular, logo aparecia, sozinho com o seu cassetete, o polícia de giro que, por azar seu, ouviu aquela gritaria toda e não pôde travar a tempo para mudar de rua, fazendo ouvidos moucos àquela barulheira infernal.

Tudo porque, da vizinhança, todas as mulheres e os muitos homens que estavam em casa pela caixa ou pelo seguro, alguns deles tanto ou mais mulherengos e coscuvilheiros que elas, elas em roupão e eles em camisola interior todo o dia, vieram a correr enfiar-se nas janelas de guilhotina.

Encavalitados uns nos outros e debruçados com mais de meio corpo cá fora, em termos de caírem, tinham-no topado lá em cima e ele, sabido, bem topou que eles o tinham topado.

Sempre conciliadora, a autoridade (“por que raio é que vim hoje por aqui?!” rosnava ele para si) aconselhava tenham calma, tenham calma, tenham calma…Tenham calma, se não tenho de participar a ocorrência lá na esquadra e isso só serve pra dar chatices a todos e ninguém ganha nada com o negócio. Vejam lá, vejam lá se se entendem.

E ia-se, deixando a pendularidade e estugando, ofegante, o passo até alcançar outra rua tranquila que dele não necessitasse e onde pudesse retomar, no seu inalienável dever, (na altura o dever já era inalienável mas hoje também é incontornável) o repetitivo movimento isocrónico de pêndulo.

Mas, deixemo-nos de coisas assim tão tristes.

Com doze, recordo ainda vaidoso, entrava-se no "Quadro de Honra" o que significa que já na altura a honra andava muito por baixo, embora acima da tona de água, mas com forte tendência para descer, como, com o tempo, se veio a confirmar.

À direita, havia o vestiário onde se deixava o sobretudo, a gabardina, o chuço, às vezes a pasta, mas, especialmente, os olhos agarrados à Tilinha que, isso eu assevero, era muito mais atraente e jovem que a senhora Augusta e até que a Candidinha. Creio até que, muito ao de leve, pintava os lábios, mas honestamente não o afirmo, porque o reitor, bem informado como devia estar, tal desvergonha nunca iria permitir.

Vem a propósito dizer que as mulheres, mesmo as que não eram ciganas, andavam de saias sem qualquer racha (na saia) pelo menos com um palmo abaixo do joelho e todas tinham as orelhas furadas onde enfiavam os brincos, como hoje fazem os homens.

As peixeiras e as hortaliceiras usavam arrecadas e cordão de ouro maciço, de quatro ou mais longas voltas, ao pescoço.

Hoje ainda há muitos homens que usam fio de ouro (com uma cruzinha, o tipo de sangue com o Rh e as alergias), mas poucos aderiram às arrecadas. São muito pesadas e caras, anda por aí muita roubalheira e repuxam, chegando a rasgar, por completo, os furos das orelhas.

O Pedrosa e o Pires comiam, como eu e muitos outros famintos dos arrabaldes, na cantina do Liceu.

Todos bebíamos água da torneira servida em jarros de vidro com asa do mesmo material.

O Pires, que dava uma Física exageradamente enfadonha e tinha digestões difíceis devido aos fritos e ao estrugido do arroz, arrotava ao longo da aula das duas, disfarçadamente com a cabeça levemente inclinada para trás e sem pôr a mão na boca, tses reprimidos, sibilinos e prolongados, que se reflectiam na parede do fundo da sala, reverberando por toda ela.

Como não era na parede do fundo que havia pendurados os tais retratos de que falei, não era por aí que o Pires, com os seus subtis arrotos, ia ter ficha na PVDE, a futura e malograda PIDE, DGS. Sim, porque se eles nessa parede estivessem e ele lhes arrotasse directamente nas ventas, como a muitos de nós dava vontade, ele ia chatear-se e ficar pelo menos três dias de pé no isolamento com uma pinga de água a cair-lhe de cinco em cinco minutos na cabeça, enquanto o queimavam com pontas de cigarro debaixo dos braços e lhe davam biqueiradas no vértice anterior onde se encontram, no cimo, os membros inferiores.

Aquelas aulas de Física, e de modo particular estas a seguir ao almoço, eram verdadeiras camaratas de gente, de olhos vítreos ligeiramente abertos e ouvidos moucos quase fechados, a sonhar com os míseros 10 minutos do intervalo que haviam, inexoravelmente, de acabar por chegar.

Os que estavam à frente, por verem mal e usarem óculos, como o Vítor (que era o 2) e o Mendo (que era o 1), não podiam dormir por decência em relação ao Pires e por indecência pelas actividades extra curriculares que o Vítor, para passar o tempo, desbobinava para uma plateia restrita de 5 ou 6 carteiras inscritas num círculo de cerca de 2 metros de raio, com centro no buraco do tinteiro da carteira que ambos partilhavam.

Era este o meu caso que estava logo atrás (eu era o 10) e que também não podia dormir, nem tão-pouco o desejava, numa altura daquelas. O Vítor, também um mestre na arte de tocar gaita-de-beiços, quase não tinha falangetas por tão sofregamente roer as unhas. Tinha apenas belos cotos rombudos na ponta dos dedos.

Com duas dessas maçanetas (a do indicador e a do anelar da mão direita) fazia hilariantes rábulas, movendo, sobre e sob o tampo da carteira, em golpes variados e sempre inesperados, o boneco assim conseguido. O dedo médio ficava recolhido preso pelo polegar, e o dedo mindinho, apenas com o auxílio mental, também recolhido ficava.

E assim o tempo da aula praticamente voava e toda a gente ficava a gostar muito das aulas práticas de Física.

O Pedrosa, nas aulas sempre de pé, (nunca nenhum de nós alguma vez o viu sentado, a não ser na cantina do Liceu e na camioneta dos Carvalhos), movendo-se nos corredores entre carteiras, enfiado no seu eterno sobretudo, preto e sem racha, esse não nos deixava dormir com os infindáveis “eizemplos” que nos levariam, um a um, a ir ao quadro, após sentirmos na cabeça o suave e paternal toque dos seus fofos e macios dedos a que acrescentava, com voz amena, ”este”.

E “este” lá ia, enquanto os outros, Exemplo 1º, Exemplo 2º, Exemplo 3º,..., Exemplo 23º, Exemplo 24º... iam escrevendo no caderno diário quadriculado comprado no Pereira o que se ia passando no quadro, sem direito a fazer perguntas para tirar dúvidas, e tantas vezes arrepiados até à medula pelo traço de giz duro e arenoso que nele derrapava como unhas curtas escorregando por uma parede lisa e dura.

Os que mais se enganavam e tinham de apagar muito faziam uma poeirada do caraças que os fazia desaparecer e obrigava a tossir e a esfregar os olhos as duas filas da frente e impedia de enxergar o quadro não só essas duas filas mas todas as restantes.

O Pedrosa tinha muitos filhos já feitos e outros, em carteira, pra fazer, mas nunca faltou às aulas embora se tivesse constipado e ficado com tossiqueira e roufenho muito raras vezes.

Não havia ainda televisão e, como ele também não tinha rádio, deitava-se cedo porque tinha também os seus deveres de casa e porque, no dia seguinte, depois de vestir o sobretudo e pôr o chapéu preto de aba larga, tinha de apanhar a camioneta que saía de Perosinho às sete e pouco da manhã, onde o esperava o lugar marcado atrás do condutor.

Estimava, como ninguém, esse seu sobretudo com que também ia à missa ao Domingo e que, ao que se dizia, comprara, uma sorte!, por tuta e meia, na feira dos Carvalhos, que é todas às quartas-feiras.

Não consigo imaginar, nem reconheceria, o Pedrosa sem o muito seu sobretudo. O mesmo me sucede quando vejo na rua uma cara que de certeza conheço não sei de onde e que, afinal, não é mais que a dum guarda-fiscal, mais que meu conhecido, que nesse dia estava de folga e andava à paisana.

Só tenho como certo que o Pedrosa usava camisa de colarinho branco, gravata preta e, pelo menos do joelho para baixo desde um pouco acima da borda do sobretudo, calças cinzentas e sapatos pretos de biqueira larga, tamanho 43 ou 44. O resto da roupa nunca a vi, mas acho que vinha decente e compostinho.

Estava-se, como já disse, na tal guerra a que chamaram segunda, e na cantina, só havia meio pão molete, cortado de viés para parecer maior, para cada um dos comensais.

A outra metade, diz-se que umas vezes ia para os alemães e outras prós ingleses, em ambos os casos em sinistros comboios de mercadorias bem trancados, puxados por robustas locomotivas do Far-West alimentadas a achas, ainda verdes e com folhas, de eucalipto acabado de cortar. Era uma pressa!

Saíam pela calada da noite de Campanhã com duas lanternas de óleo, uma amarelada à frente outra avermelhada atrás, bruxuleantes e quase apagadas, e com rodas que, pelo que a minha casa, junto à Estação de Valadares, abanava e pelo barulho matraqueado que produziam, deviam ser quadradas ou, quando muito, hexagonais.

Lá pelo sexto ano, o Pedrosa deixou-nos para ir, sem largar o sobretudo, dar exemplos a outros.

Apareceu-nos então, transferido do liceu da Póvoa de Varzim, um matemático sem exemplo, de perna curta, olho verde e cabeça luzidia (eu não disse brilhante) que, sempre sentado e de sorriso pulha, sadicamente folheava, com derramado deleite, a caderneta, parando aqui e além, voltando atrás, saltando à frente, até chamar pelo senhor número tal, não, não, antes o senhor número tal, um qualquer desgraçado, ignorante como eu, a quem ele, não tenham dúvidas, invejava o cabelo ou detestava a cor dos olhos.

Hoje estou convencido que dali saíram muitos bons e conceituados médicos que, não fora ele, teriam gostado da matemática e sido, como eu, trabalhadores por conta de outrem com a vida muito à pele, com o telefone cortado e com a água, a luz e a renda de casa pagas à rasca no último dia.

Que nos perdoe a sua mãezinha as pragas que rogámos ao filho que nela se reflectiam. E que Deus se apiede de nós (os tais médicos devem mas é estar-lhe agradecidos) por nunca nos termos arrependido desses terríveis desabafos que o não deixam descansar no céu. Grandessíssimo filho dessa tal senhora que teve uma série de filhos e abortos de quem nunca soube quem era o pai!

Mas alguém se esqueceu do bondoso Luizinho que nos dava Inglês e pelo menos 14 só por sabermos dizer “tooth” com a linguínha entre os dentes da frente e “flower” com a mesma enroladinha para trás?

O Luiz Afonso era Luizinho por ser extremamente bondoso, sem ser pio, e não porque fosse pequenino, coisa que ele de facto não era.

 Ainda hoje, quando passo por Oxford, muitos indígenas britânicos, sabedores da minha presença e dos laços discentes, e não só, que a ele me ligaram, vêm pressurosos ter comigo para tirar dúvidas de pronúncia, e até de sintaxe! e sempre todos, sem excepção e antes de tudo, me perguntam: “How is the little Lewis?” Na despedida, nunca se esquecem: “Please, give our best regards to the little Lewis”.

Que saudades da grafonola tipo “His Master Voice” com o seu cãozinho poliglota sentado, que mobilizava entre nós o mais lesto e solícito para mudar a agulha e lhe dar frequentemente corda com a manivela, antes que o disco começasse a disparatar e, a baixas rotações, se soltassem sons graves, cada vez mais arrastados, o que faria que toda a aula entrasse em incontrolada e alarve risota geral. Quando a rombuda agulha encravava/retornava, encravava/retornava no disco riscado ou partido e se repetiam, vezes sem conta, os últimos engasgados sons era o fim da macacada: La famille est au salon-salon-...lon-...lon-... Where is the grandfather-father-...ather…- ather...-er-...er-... ?

No Carlos Alberto, quando partia a fita ou faltava a luz, era a mesma cena mas aí não era tão aterrador embora também batessem violentamente com os pés e assobiassem, com dois dedos na boca. Nós, ainda por cima, batíamos violentamente com os tampos das carteiras e atirávamos o apagador e paus de giz inteiros uns aos outros.

Ninguém esqueceu, disso estou eu bem seguro, o mais que sereno e bom Totó, com a roupa a cheirar a fumo, (suspeito menos duma eventual lareira que ele tivesse na sala do que das fogueiras nos quintais vizinhos que empestavam as roupas penduradas nos arames e as estendidas nos coradouros), e nos deu Francês quase ignorando o “Recueil de morceaux choisis”, cuja tradução é, como ainda bem se recordam, “Recolha de morcelas e chouriços”.

Não era o Totó também nada parco nas notas que nos dava que, por mais que tivéssemos sabido, nunca merecemos pela barulheira indecorosa que fazíamos, abusando insolentemente da sua bondade e um tanto avançada idade e aparente surdez.

Digo aparente, porque, pensando melhor, acho que ele não era assim tão irremediavelmente surdo como parecia e tinha mas era montes de cera acumulada nos ouvidos. Muitas vezes o apanhei a desentupi-los com o coto muito curtinho dum Viarco mal aguçado que somiticamente sempre o acompanhava no fundo do bolso do lenço ornamental do casaco que ele usava sem o ornamento para melhor pôr e tirar a ponta do lápis que frequentemente encravava, atravessada bem lá no fundo.

O Totó complicava a coisa e, não sei se por lhe dar mais jeito, se por ser burro ou atravessado, limpava o ouvido direito com a mão esquerda e o esquerdo com a direita.

Neste aspecto da audição foi ele feliz porque nunca sofreu com a barulheira nos limites da loucura vomitada por gente arruaceira, como eu, o Pedro Ribas, o “Carolina” (Rui Jorge Correia Monteiro), o Zé Dias e outros energúmenos que, de pé e aos berros, o insultavam de dedo ameaçador em riste quando ele anunciava as notas que ia dar no fim do período.

Punha, então, o bom homem a mão direita em concha na orelha direita, com o cotovelo do mesmo lado apoiado na secretária, e dizia “estou a ouvir um leve sussurro” (sic). Às vezes trocava de mão e de orelha para dizer exactamente o mesmo.

Surpreendentemente, ao contrário do que fazia para tirar a cera dos ouvidos, o Totó não cruzava as mãos, e punha a mão direita no ouvido direito e a esquerda no esquerdo. Uma questão de jeito.

Perdeu coitado, na sua convencionada surdez, o enorme prazer de fruir na íntegra os sons ternos e melodiosos da harpa que a sua apaixonada e bastante mais jovem esposa, Conceição de Oliveira, tocava com virtuosismo.

A não ser que ela, exímia como era na sua arte, ao mesmo tempo que fazia vibrar as cordas com os seus esbeltos e ágeis dedos, lhe afagasse de passagem, com fugidia doçura, a orelha mais próxima, até que ele, babado e perdido em sonhos celestiais, adormecesse vestido, rodeado de anjos e querubins. A D. Conceição com desvelo, deitava-o, (era pesado como uma a pedra), tirando-lhe, sem os desatar, os sapatos, que punha muito juntinhos lá fora no corredor. E deitava-se a seguir, encostando a harpa junto à cama ao lado do guarda-vestidos.

Os que não jogavam à bola sabiam muito português porque liam avidamente nos intervalos Gil Vicente e o seu “Quem tem farelos?” Ordoño, Ordoño espera a mi, ó fi de puta rui.

Liam e reliam com sofreguidão Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro nem se fala. Deste ainda até há pouco não passava eu um dia sem ler, ao deitar como se fosse uma oração, do Capítulo I da sua “Menina e Moça”: “Menina e moça, me levaram de casa do meu pae pera longes terras. Qual fosse então a causa d`aquella minha levada, - era pequena, - não na soube.”

Ficava-me por aí, porque adormecia, nunca daí conseguindo passar e dou um doce a quem o conseguir.

O meu psiquiatra, onde os meus pais, aflitos, ao fim dumas crises  foram comigo a correr, logo me disse que era preferível eu tomar ao deitar pelo menos dois comprimidos de Xanax 0,5 mg que não tinha tantos efeitos secundários nem criava habituação. Mas tenho pena.

Tenho pena porque o livro, tarde vejo eu agora, especialmente para quem tem 14, 15 anos, está muito adequado por ser escrito em linguagem arcaica corrente muito melódica e ter um enredo que prende desde o primeiro ao último parágrafo. Eu é que, como sempre, era uma besta e só lia O Papagaio e O Mosquito.

Todos nós subíamos ao estrado para declamar Pessoa e o seu “Mar Português”. Chorava-se-nos a alma copiosamente, porque contava para a nota, e soltávamos aos ventos “Ó mar salgado quanto do teu sal são lágrimas de Portugal…”.

Representávamos com gestos largos o Frei Luiz de Souza do Garrett “Quem és tu (meu cara de cu) Romeiro (seu grande paneleiro)? Ninguém (és tu também)!”

[entre parêntesis está o que muitos nós acrescentávamos para dar mais vida e cor ao texto, baixinho e pra dentro, enquanto solenemente declamávamos].

Os que não sabiam nada de nada em nada, em geral, sabiam de cor e recitavam, extra programa, “O Melro” do Guerra Junqueiro. Ainda estão hoje para saber a grande figura de parvos que faziam.

Ninguém leu Eça julgo que por estar esgotado e à Lello não valer a pena fazer, com tiragens tão reduzidas e tanto desinteresse evidenciado, novas edições.

Mais tarde, deste último li, sempre muito silencioso, bem fechado por dentro, em minha casa, na minha retrete e com a água a correr de vez em quando para disfarçar, toda a sua obra, tendo começado pelo “O Crime do Padre Amaro”. À medida que ia lendo, rasgava as folhas e deitava-as logo na sanita com prolongadas descargas pra ninguém saber o que eu fazia e julgar que eu de há uns tempos para cá andava mal do intestino.

Recordo no Português-Latim o Figurão (terra est rotunda, in oculo retro, rosa rosae, etc.) e não esqueço a dona Ema Vidal Pinheiro, esta por ter vigiado o meu exame de admissão ao Liceu e até me ter ajudado, chamando-me à atenção para uma palavra que eu, com a pressa e uma inesquecível caganeira, deixara inacabada. Chamou-me, então, com carinho maternal, “cabeça de alho chocho”, dando-me uma suave pancadinha na nuca. Não lhe devo ter agradecido, aflito como estava a apertar-me todo e em especial as pernas.

Mas no Português relembro especialmente o Camboa que nos aterrou, ao princípio e antes de o pegarmos, em sentido figurado, pelos cornos, com os seus pontapés nos assentos e murros que deformavam e até quebravam os tampos das carteiras, fazendo saltar cadernos e livros e voar os lápis e a papelada.

Quem não o viu com aquela boca seca a espumar de ira epiléptica pelos cantos quando algum de nós dava um errinho daqueles que, então, podiam cortar uma carreira e hoje permitem largos voos, especialmente nas letras e na política?

Quem sabe hoje, por exemplo, conjugar os verbos haver, prever, intervir e outros do género? E alguém, neste país de ousados e sábios marinheiros que tudo descobriram, consegue hoje descobrir quem é e onde está o agente da passiva? Algum de nós não lhe terá ficado para sempre grato?

Alguém, depois de o conhecer, dele deixou de gostar, apesar da sua cara quadrada não ter nem de longe, e muito menos de perto, os atributos e encantos das ignaras Edites Estrelas dos nossos dias que, lá em Carrazeda de Ansiães e noutras recônditas berças, escolhem o Português por serem uns zeros a matemática e não por gostarem da língua daquele senhor que não tinha um olho e sabia nadar muito bem só com um braço, tendo outro fora de água a agarrar um livro?

Aquele senhor, uma espécie de Quim Barreiros sem acordeão, sem bigode e sem chapéu, que escreveu esse mesmo livro só prá gente se entreter muito divertidos, quatro séculos mais tarde, a dividir as orações e a procurar o sujeito e o complemento directo, bem escondidos e baralhados no meio das estrofes?

O tal senhor morreu na miséria em 1580, com a Pátria. Quim Barreiros vive rico em 2001, com a mulher e os filhos.

Com o Óscar Lopes, homem aparentemente tímido, pouco comunicativo, sem ponta de humor, sombrio, maçudo, terrivelmente monocórdico e anasalado, pouco aprendemos e nem chegámos a apercebermo-nos que ele era alguém de cultura acima da média, que, por não se ter filiado na promissora Mocidade nem na heróica Legião Portuguesa, teve os seus amargos de boca.

Como não sabia ensinar, por decreto, e para compensar tantos dissabores, passou, sem fazer qualquer prova de esforço, a Catedrático da Faculdade de Letras do Porto, aí por 1975.

Não merecia ser tratado como muitos outros, de longe menos sabedores e até ignorantes vulgares, a quem esse tipo de promoção aconteceu apenas como recompensa pelo seu reconhecido antifascismo, pelo seu veloz oportunismo ou pela sua participação mais entusiástica na vida política de esquerda a que, à pressa, aderiram começando por colar cartazes e a borrar paredes.

Foram os chamados “decretinos” e, como disse, faz-me hoje pena ver o Óscar Lopes entre eles estar incluído. Nunca cheguei a determinar se ele, lingrinhas como era, além de subversivo, não era também subnutrido.

Ninguém certamente, com um mínimo de religiosidade, esqueceu as devotas aulas de Moral. Aí se cruzavam projecteis, com e sem ogiva, e aviões sem motor que planavam silenciosos pela sala.

Também aí se ensaiavam catapultas de curto e médio alcance, no meio do mais vergonhoso basqueiral que obrigava, por vezes, à suspensão temporária das outras aulas adjacentes situadas ao longo e por cima de todo o corredor, até se ter como certo que o ruído provinha de orações e ladainhas dum punhado de crentes em transe.

O Padre Crispim sofria e sorria com santa bonomia pois assim via, sem mais, abrirem-se-lhe de par em par as portas do Céu.

Mas o Padre Brandão, que havia de chegar a Bispo do Porto, talvez pelo que connosco tarimbou, rubro e à beirinha do colapso, rogava para dentro todas as pragas que lhe vinham à memória, dos tempos em que andava aos ninhos e nem sonhava ir para o Seminário.

E, entre o Céu e esganar aqueles trinta e tal energúmenos, haverá alguém, que tendo vivido aquela bagunça infernal, hesite em adivinhar qual teria sido a sua terrível opção, não fosse ele temer não passar pelo purgatório nem entrar sequer no Inferno e andar hoje por aí com a alma a penar por ser considerado o mais terrível “serial killer” dos anos quarenta do século XX da era de Cristo?

Quero recordar e homenagear o Mário de Vasconcellos e Sá, sempre vestido a primor e a cheirar a alfazema Atkinson’s, que, esse sim, cultivava o humor, nos cativava e fazia rir, nos tempos em que rir no Liceu e noutros sítios era quase proibido, como era jogar à bola e até jogar o botão. O Mário dava aulas de Geográficas, quase por cima da famigerada piscina coberta...de porcarias, de que ainda falarei.

O Dias Ovo, o senhor Dias, claro, como antes na outra ala acontecera com o senhor Queiroz, zelava, mas sem bigode, para que nos comportássemos como meninos dignos de envergar a farda da Mocidade Portuguesa, em respeito pela fivela do cinto que lhe segurava os calções e onde se destacava um S maiúsculo, já não lembro se de Serafim ou se de Secundino.

Como o tempo passa!

Nunca fui da Mocidade, mas hoje tenho muita pena. Tanto eu teria gostado de ter envergado aquela tão honrosa farda e chegado, fosse eu de tal digno, a Chefe de Castelo, como quem na tropa chega a sargento!

Também não esqueço o Bonifácio nem o Souza que nos davam ginástica sueca (estende, encolhe; pra cima, pra baixo; prá frente, pra trás; um dois, um dois; insiste, insiste; flecte, flecte; um, dois; um, dois, um, dois, um dois e... Hop!) e que, apesar de tudo e por inata deficiência minha, pouco me fizeram desenvolver o arcaboiço.

Isto confirmo eu sempre que de manhã me olho de lado ao espelho e vejo a barriga pra fora e o peito pra dentro.

Nunca usámos aquela parafernália de aparelhagem gímnica que jazia bolorenta no ginásio nem nunca aprendemos a nadar, mas isto porque a tal piscina coberta, ali mesmo ao lado do ginásio, esteve todos os nossos sete anos de Liceu (mais os que se lhe antecederam e os que se lhe seguiram) coberta sim, mas de mesas e carteiras que naturalmente se iriam estragar se se pusessem para lá a meter água até às bordas. A ideia da piscina até tinha sido boa, mas, digam-me, onde é que se ia meter a merda da mobília?

A ninguém lembrava instalar aquecimento nos estabelecimentos de ensino porque, como em Bragança e na Covilhã e em Montalegre e no Porto e no resto do país, os Invernos sempre foram muito temperados e a rapaziada muito rija.

Mais tarde, na Faculdade de Engenharia do Porto, onde também não havia aquecimento, mas porque os Invernos entretanto se foram degradando, as aulas das 8 começavam às 8 e meia prá gente estar meia hora a aquecer os pés, batendo-os em cheio no cu do chão, ao mesmo tempo que dávamos murros no olho das paredes para aquecer as mãos. A rapaziada era mesmo rija, porra!

E do Filinto, não há recordações? Se há! Então alguém pode esquecer o temido Filinto, uma fera diziam, já um tanto amansada quando o conhecemos, a coçar e apartar, como quem não quer a coisa, os tomates, dando um jeitinho arqueando as pernas, enquanto, sempre a rabujar, pregava a lição pela sua própria cartilha?

O Filinto detestava, como todas as pessoas normais, o maçudo livro único, onde só havia asneiras e calinadas de conveniência e de conivência?!

Fosse ele hoje vivo e havia de ver a montanha de manuais, tantas vezes cheios de graves inconveniências, admiravelmente ilustrados e coloridos.

Também não era preciso exagerar, mas hoje publicam-se quase diariamente, como se fossem jornais desportivos, e são postos à disposição da juventude actual que, na sua maioria, quando muito, faz o favor de os abrir apenas uma vez na vida para ver se dentro têm alguma senha que dá direito a uma mota, e faz finca-pé de nunca os voltar a abrir porque, pelo que se apercebeu, na curta e enviesada olhadela, não os sabe ler apesar das tantas e tão belas figurinhas feitas para ajudar!

Quem se pode ter esquecido da entusiasmante e fidedigna “História do Mattoso” e do Mesquita que tão bem a narrava?!

 Ainda hoje estou lá a ver a foto do deus Horus com cabeça de falcão e a fotografia tipo passe do Camões com um adesivo em cruz num dos cantos!

A propósito, lembram-se de certa tarde, (poderá alguém tal ter esquecido?!), num tempo livre, termos enchido uma sala para assistir a uma aula dada pelo meu querido "compadre" (António) Cardoso que apanhava e imitava, como ninguém, os tiques e os taques de toda a gente e em particular os dos professores?

Lembro, com que saudade!, vê-lo, de caderneta debaixo do braço, entrar de rompante pela sala dentro direito à secretária onde se mergulhou até ao pescoço, tal como fazia o verdadeiro Mesquita.

Todos nós nos levantámos solenes como se catapultados por uma forte mas respeitosa mola e logo nos sentámos ávidos e serenos para assistir a uma aula verdadeiramente a sério; a única aula, em todos aqueles sete anos, onde todos estiveram atentos e calados e aprenderam alguma coisa sem terem no fim de escrever o Sumário. Inesquecível e inenarrável!

Para o fim, não apenas por estar no topo das coisas inesquecíveis, mas também porque se gosta que todas as histórias acabem bem, deixei o eterno Malpique, fresco e viçoso como um alho-porro pelo S. João, direito sem ser altivo, como quem engoliu uma cana-da-índia com nós um pouco acentuados, e a piscar muito certinhos e ritmados os dois olhos como quem quer refrescar o pensamento com a brisa suave do seu pestanejar.

Usava repetidamente inúmeras frases feitas e belas metáforas, muitas das quais infelizmente esqueci; mas ainda hoje, saudosa e saudavelmente, sem querer, plagio as que indelevelmente me ficaram.

Todos nós, “ estúpidos como bancos de cozinha sem buraco”, o admirávamos pelo seu porte, pelo encanto da sua fala e pela poesia da sua prosa. Juro que nunca houve, nem haverá, alguém que “dele diga o que Mafoma disse do toucinho”.

E, vejam só isto, o Malpique dava a filosofia bruta contida num livro aterrador que pesava para cima de dois quilos, que não me lembro de ter lido e felizmente nunca me caiu num pé!

As aulas acabavam lá pelas quatro da tarde.

 

 

 

CÁ FORA,

COM CENAS DE LÁ DE DENTRO

 

 

 

O senhor Armindo, boné à banda, casaco branco sem forro, de fina fazenda, (fina, por estar muito coçada), e de despretensioso corte (despretensioso, porque foi a mulher que lho fez usando o pano dum gasto e grosso lençol de linho que lhe deu uma senhora rica onde ela andou a servir até com ele casar), aguardava-nos cá fora com o seu triciclo da Sorveteria Milaneza (com Zê) onde, na garbosa proa da sua nau, transportava sorvetes de baunilha, chocolate e limão.

Muitos aí esbanjavam dois ou cinco tostões, conforme as posses de momento.

O senhor Armindo fazia parte do Liceu.

Para mim, ainda hoje ele lá está, cá fora, na rua, escorraçado pela polícia, com o seu barquinho de meio corpo, a vender sorvetes e forçado para sobreviver a ser indiferente ao sol, à chuva e ao frio.

Está lá sempre, como um monumento onde tantas vezes me apetece ir pôr flores.

Ficou-me na memória, não pela qualidade dos seus sorvetes, mas pelas suas virtudes de homem aparentemente feliz, bem-humorado, afável e simples que não passou da 3ª classe, se é que fez a 2ª ou sequer entrou na 1ª.

Na infantil também não andou porque não havia, (a não ser para alguns meninos e meninas tipo Foz que tinham preceptora e aprendiam francês, piano e alguns violino), e porque ele, como muitos ainda hoje (et ad aeternum), não teve direito a ter infância.

Acabava-se aqui o dia. Os destinos dispersavam-nos em grupos que se iam reduzindo gradualmente à medida que, um a um, nos íamos metendo em casa a preparar para outro longo e extenuante dia …

 

… o dia de amanhã.

 

 

 

 

n.º 21, 1º B.

 

 

 

 

Em 10 de Junho de 2002

 

4ª VERSÃO

corrigida e aumentada

 

 

 


FIM  

 

do

 

VOLUME I  -  o que eu vivi

 

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VOLUME II - aqui estão coisas que me contaram e ainda vão contando

 

(clicar para ver)

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