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LICEV de ALEXANDRE HERCULANO - VOLUME II

 

 

O que me vão contando...

 

 

ADENDAS DISPERSAS



    Tudo o mais que se segue vai-me sendo pingado em conta-gotas por queridos amigos, aparentemente adormecidos que vão lendo o que para trás está escrito e enviando descrições de episódios e pormenores que me escaparam, ou porque os tinha presos debaixo da língua (e tão bom é soltá-los e saber que não estou só!) ou porque não me lembro de os ter vivido, ou ainda porque, lamentavelmente, os esqueci.
    Como, num raro lapso de lucidez, achei ser uma parvoíce das grandes estar para aqui à espera que passem dez anos para juntar tudo e fazer uma nova versão, arriscando-me, pelo meu lado, a nada escrever e, pelo dos outros, a não ir a tempo de ser lido, resolvi, precavidamente, num acto de extrema audácia, ir escrevendo à medida que forem pingando as gotas, não vá o diabo tece-las, e secarem as fontes ou partirem-se os fontanários.
    Vou escrever sem ordem especial, falta de que o “dispersas” do título me protege, mas ainda a tempo, assim Deus nos proteja a todos.



1. recorda-me o Francisco Miranda Guedes, meu querido companheiro de turma


    a.

 

O Veloso, (Ângelo Matos Mendes Veloso), num exercício escrito em que o Camboa nos pedia exemplos do latim em que o pê se transformara em esse, porque não se lembrou de ipse que deu esse, nem de brogipsum que deu brogesso, atirou-lhe com chipsa, um exemplo mesmo à medida de quem tal coisa ousara perguntar.
    O Camboa, nosso inesquecível, no melhor dos sentidos, professor de Português-Latim, à míngua de não poder correr tudo à biqueirada como seria seu gosto, usava correntemente dizer “chipsa”, tal como os velhos latinos diziam quando batiam com o martelo num dedo ou algo os chateava. Chipsa, deu de facto chissa que evoluiu, por via pouco correcta, para o nosso chiça, ainda usada pela gente mais educada, quando pretende dizer porra.



    b.

 

As mesmas personagens: Camboa e Ângelo Veloso.

    Faz-se um outro exercício escrito para desenvolver qualquer tema, que muito gostaria eu de saber qual foi.

Quando o Camboa entrega os pontos corrigidos e anotados, pára no Veloso para lhe lançar o seguinte aviso:

“Senhor Veloso, se me volta a fazer uma redacção destas, vai direitinho comigo ao senhor Reitor.”
Chipsa, digo eu que não me lembrava disto, será que o Camboa que eu sempre julguei um homem torto mas íntegro, era capaz de fazer tal coisa?! Ou será que o irreverente Veloso foi apenas admoestado para que não começasse, a partir daí, militantemente, a vender, por toda a sala, o Avante e a distribuir panfletos proletariamente impressos com letras meio safadas em papel do mais ordinário que havia, acabando por arrastar consigo o Camboa como encobridor, ele que tinha mulher e filhos ainda pequenos para criar, para as acolhedoras instalações da então PVDE, mesmo juntinho ao cemitério do Prado do Repouso?

    c.

 

 A D. Ema, que também foi nossa professora de português, era pequena e frágil, mas suficientemente tesa para impor a disciplina pela palavra (berro), sem usar qualquer dos métodos camboianos. Para isso não tinha arcaboiço.

Não me lembro se dava cachaços e chapadas aos de que tal precisavam. Pontapés, sei eu bem que não, porque todas as saias da época, além de terem um bom meio palmo abaixo dos joelhos, eram muito bem travadas e equipadas com ABS (Anti Basback System).
    Quando alguém era chamado e subia ao estrado para o interrogatório, o arguido, que era tratado por um número

de um a trinta e poucos, punha-se praticamente em sentido e nem pensava em ter as mãos metidas nos bolsos; se,

armado em rufia descontraído, se punha na posição de descansar, com as mãos atrás das costas, mesmo que tivesse os pés bem unidos, a cabeça erguida, a barriga para dentro e o peito todinho para fora, ouvia logo, em tom severo e em forma de gáspeas:
    “Tira-me já essas mãos de trás das costas que me pareces mesmo um polícia!”
 Meu Deus, já não me recordava que, naquela época, havia polícias e que, praticamente todos, andavam oscilantes

com as mãos atrás das costas! Sempre era melhor que vê-los, hoje, de mãos no volante, muito devagarinho,

a passearem silenciosamente pelas ruas com outro colega ao lado, como fazem ao domingo os parolos com a mulher, muitos deles, como os polícias, com um boné pousado na cabeça.


2. recorda-me o Aureliano (Aureliano Capelo Pires Veloso)


    Eu, como o Aureliano, vivíamos em Valadares (Gaia) e todos os dias vínhamos e íamos, como muitos mais de quem atrás já falei, nos confortáveis e pontuais (por serem uns pontos) comboios da CP.

O Aureliano andava mais adiantado, não porque fosse precoce e eu uma besta, mas por ter nascido alguns anos antes de mim. Ele que não esquece o nosso Liceu e todos os eternos amigos que por lá fez, e ainda se derrete, a escorrer saudades,quando desses tempos fala ou outros ouve falar, leu esta minha grandiosa obra e estranhou que eu não falasse no célebre Comboio Lombriga. E, interessado e gentil, forneceu-me documentos fidedignos para que eu tal epopeia aqui narrasse.

    a.

 

  O Comboio Lombriga partia da interface do Pirata, na esquina do Bonfim com a Avenida António Carneiro,

descia a referida Rua do Bonfim, subia a Avenida Camilo e parava na Estação Liceu onde deixava todos os passageiros que, mais ou menos contrariados, se enfiavam nas as aulas.

Não tinha paragens o que obrigava a que alguns fossem subindo em andamento, um perigo que a tenra idade do

material circulante não deixava descortinar.

Não me lembro de ter sido seu passageiro. Eu tinha entrado em 1942, e como comia, pelos tais três e quinhentos de que já falei, na cantina do Liceu, por lá certamente ficava nas habituais actividades que, por essa altura, (1943, 44), deviam ser o footstone (futepedra) ou o footclothball (futeboladepano).
    Segundo a descrição (Jornal de Notícias de 16 de Março de 1999) de um dos pioneiros que idealizou e organizou o comboio, o Abrunhosa, (que todos conhecíamos por usar, coisa raríssima na época, pêra, onde uma andorinha curiosamente fez ninho), um grupo de verdes maduros, um certo dia, munidos de um apito, resolveram arregimentar malta do Liceu para os acompanhar, em fila, seguindo o percurso atrás descrito.

Dia a dia, a bicha foi engrossando e outros foram trazendo novos instrumentos de sopro e percussão, como reco-recos, campainhas, cornetas, latas, etc.

O comboio chegou a ter cerca de cem metros de comprimento e, em dada altura, para fazer umas variações, a bicha

começou a tornear os candeeiros da rua, num belo efeito coreográfico que fazia parar ainda mais paspalhos, do que até ali.
    Eu, a esta distância no tempo, tenho como certo e posso afirmar que o Comboio Lombriga foi o verdadeiro precursor do também algo tortuoso Metro de Superfície que, sessenta anos depois, havia de começar a circular pelas ruas do Porto.
    Ao fim de várias semanas, todo o Liceu em peso, menos eu e alguns mais da minha estirpe, pelas razões que apontei, e ainda o Reitor, que era muito enjoado e nem de comboio gostava de andar, viajava no Lombriga.
    Chegou a hora de fazer um horário e de o afixar em local adequado. Começava a haver uma certa organização.
    O senhor Alfredo Moreira, dono do Pirata que ficava situado junto à gare, (mais ou menos), do oriente, solícito,

disponibilizou a sua montra para o efeito.

Um dia, nas proximidades da Rua Firmeza, uma das carruagens pedestres, o Deodato Coutinho, descarrilou e,

subindo ao tanque de uma fonte que por lá havia, começou, por chalaça (?), a arengar, não sei quê, não sei quê,

devemos fazer greve às aulas.

O senhor Alfredo Moreira foi lá dentro buscar umas coisas e, muito bem acompanhado, foi dentro também,

mas de uma casa de esquina, na Rua do Heroísmo, muito bonita e bem situada, com sossegados quartos interiores

para os "hóspedes", que, para maior sossego e conforto, não tinham vistas para lado nenhum. Hoje, pela certa,

seria um encantador hotel de charme. 
    Acabaram, ali, por se convencer que o Comboio Lombriga não era uma associação de malfeitores itinerante,

mas o Reitor, muito mais desconfiado e zeloso do que eles, para mostrar serviço, quis ir mais longe e tirar

a coisa bem lá do fundo.


    Na aula de Canto Coral e, sob a batuta do saudoso Regadas, cantava-se a Tia Anica, julgo eu que de Loulé.

O Dias Magro, não o Ovo, mete suavemente o nariz na porta, o Regadas pára de dar ao pedal, levanta firme do teclado a mão direita e logo se calam as vozes dos pequenos cantores.

O intrometido nasal, enfiando um pouco mais o apêndice no silêncio da sala, pede a comparência na Reitoria dos

números tal e tal que correspondiam, não por acaso, aos dos organizadores do comboio, o Abrunhosa,

o António Montenegro e o Agostinho de Matos.
    Um bófia balançava-se, lá longe no fundo do corredor, junto à Secretaria, quando os três miúdos, sempre escoltados pelo Dias Magro, foram encaminhados para o gabinete soturno, cheio de vasos com fetos e begónias, do Magnífico Reitor, mesmo ali ao lado.

De pé, este, com ar solene, rezou-lhes missa e fez um longo sermão. “Nem mais uma viajem do comboio,

senão ponho-os na rua e nunca mais cá entram, ouviram?” E, em vez do litúrgico “ite, Missa est”, berrou como um vulgar pagão: “Saiam-me depressa da vista e vão já para a aula acabar de cantar a Loja do Mestre André, suas grandes bestas! ”
    O Magnífico lavou as suas mãos e ficou muito satisfeito por dentro porque ia ficar ainda mais bem cotado no ranking dos dedicados servidores do Estado.

Mas, o inesquecível Comboio Formiga, de que eu imperdoavelmente me tinha esquecido, nunca mais pôde encher de alegria, com o seu fumo e as suas faúlhas juvenis, aquelas, outra vez, sombrias ruas do nosso Porto.

    b.

No dia 24 de Abril de 1999, também no Jornal de Notícias, o Aureliano, numa longa crónica intitulada

“A propósito do Comboio Lombriga”, descreve, entre outras coisas muito interessantes, uma peripécia que

também merece ser aqui registada.

Vou tentar resumi-la, espremendo-lhe o saboroso sumo a que adiciono, como venho sempre fazendo,

um pouco do meu açúcar.


    Era época de Carnaval.
    Alguém, no dia 24 de Fevereiro de 1938, comprou, despejou ou deu a despejar, na cadeira e na secretária do mestre que estava a chegar, duas caríssimas (dois tostões, uma, um cruzado as duas) caixinhas de pós de espirrar.

A aula ia ser de Francês onde iria “parler” o Padre Botelho que, além de padre e boa pessoa, era surdo,

como as grossas portas do seminário, e sovina, como o raio que o partisse, nas notas que dava.

Não se recorda o Aureliano se o bom homem chegou a espirrar, mas sabe que ele saiu disparado como se fugisse do diabo, certamente a benzer-se repetidamente pelo corredor, deixando todos os suspeitos, bem fechados na sala, em prisão preventiva.
    Cerca de vinte minutos passaram e aparece o Reitor, o mesmo pedagogo que entra na anterior história do “Comboio Lombriga”.
    Começa o interrogatório.

Moita, ninguém se acusa!

Há uma segunda volta inquisitorial, ainda mais torturante, e o ingénuo Teixeira da Fonseca, para todos o Areosa,

(por na Areosa a família ter uma loja e ele lá morar), borrado até ao cimo do pescoço, já a roçar o bordo do queixo,

caiu apatalhadamente em dizer que, da sua parte, só tinha visto o número 21 com uma caixinha na mão, e mais nada.  O arguto Reitor, da parte dele, descarregou o excesso de ar que lhe enchia o peito e, brilhantemente, chegou à ponta da intrincada meada.
    Os pais dos seis energúmenos confessos recebem na volta do correio uma carta onde se sentencia:

Puno com a pena de suspensão da frequência do Liceu, por oito dias, os alunos tal e tal (número e nome), todos do 3º ano da turma B, porque no dia 24 do corrente, com propósito deliberado e premeditado, compraram pós de espirrar que levaram para a aula de Francês,onde os espalharam, sobretudo no lugar do respectivo professor, com manifesto agravo da boa disciplina e do respectivo mestre, e a tal ponto que este não pôde dar a sua aula por a atmosfera ser irrespirável (…)


A Bem da Nação,

O Reitor

António Barbosa   "

                  

    A maioria de tais abjectos seres viu, com gáudio, muito bem reprimido por causa do cinto dos respectivos pais,

as férias de Carnaval desse ano passarem de cinco para treze dias.

O Aureliano Veloso e o António Koehler, são dois desses, tendo o último a agravante, que foi apensa ao processo,

de ter pago, com dois tostões do seu subversivo bolso, uma das caixas do tal pó espirrante, o que, felizmente ou infelizmente, (só ele o pode confessar), não fez que lhe tivesse sido agravada a pena.
    Apesar de para sempre marcados pelo estigma deste seu hediondo crime, que seriamente ameaçou destruir

as suas carreiras e abalar o regime, ambos acabaram por concluir, com muito esforço e tenacidade,

o curso de engenharia química na UP.

O primeiro esteve-se um tanto nas tintas, (nas tintas, sim!), e ainda chegou a Presidente da Câmara do Porto,

e o segundo conseguiu ser um industrial de sucesso que deu os primeiros arrojados passos no fabrico dos devastadores pós de espirrar, acabando por possuir um dos maiores impérios industriais na produção de gás mostarda que, como se sabe, é apenas usado em fins eminentemente pacíficos.


Esta adenda foi acabada de elaborar e impressa em

10 de Junho do ano de 2003 dC.

 

 

....

....

 

passaram-se anos  ...

 

... veio 2016 e ... 

 

3. 

 

Baptista disse

 

Apreciei  ler as tuas lembranças de "adolescente" que compartilhei e que coincidem na maior parte dos casos,

embora algumas  tivessem já um aspecto nebuloso.

 

Como morava a 5 minutos do Liceu,na Rua Ferreira Cardoso, nunca ia à cantina embora, às vezes, cravasse 5 escudos à minha Mãe, supostamente para o almoço, mas na realidade para comprar um maço de 10 cigarros DE RESZK no Pirata.

Nessas alturas, apanhava o comboio lombriga ao voltar ao Liceu.

 

Entrei no 1º ano B com o nº 16 e fui sucessivamente 16-12-10-6-4-3-2. Penso que o Vítor terá chumbado no 6º ano

para eu ser o 2 no 7º, sempre na B, ou teria eu voltado a ser 3 no 7º ano? O 1 era o Mendo.

 

Esqueceste uma figura interessante: o Abrunhosa, contínuo da Mineralogia que não só nos explicava os ortorrômbicos, etc. etc., ao fim da tarde, mas e sobretudo, dava injecções de penicilina às vítimas de esquentamentos!

 

Além do Comboio Lombriga, que descia o Bonfim e subia a Av. Camilo, havia um em sentido contrário:

os seguidores do Filinto que com ele desciam a dita Avenida em grande algazarra até que ele apanhasse o  eléctrico no Campo 24 de Agosto. Ele adorava a companhia e livrava os acompanhantes  de alguns “zeróides”. Avenida essa onde se apanhavam ameixas verdes que davam caganeira, pela certa.

 

O Leão foi igualmente protagonista de um episódio com o Luisinho em que lhe encheu o tinteiro, do qual este retirou a tinta de joaninhas.

Sem esquecer a pose muito séria dele, o Leão, numa aula com um grande lagarto na lapela do casaco.

 

A dada altura um grupo em que me vi inserido, sem saber porquê, foi o Leão chamado ao Barbosa que mandou separar o grupo dentro da reitoria em dois, segundo as simpatias políticas: pretos para um lado, brancos para o outro, e terminou com um: não quero cá cinzentos!

Não deu nada, mas estavam lá o Veloso, o Mendo, o Leão, etc. etc.

 

Passando pelo facto do Bonifácio me ter dispensado da “gimnástica”, por motivos óbvios e prova de incompetência dele, e por o Grilo me ter dispensado do Canto Coral por eu não acertar com uma nota, recordo o Dr. Lobão de Carvalho - médico escolar - a quem fiquei sempre grato. 

(assistiu o meu Pai que faleceu quando eu estava no 5º ano e me vieram chamar a uma aula do Ilídio).

 

Concordo inteiramente com os comentários sobre o Óscar Lopes e fiquei muito mais tarde estupefacto

com os louvores que lhe fizeram; em compensação, numa altura em que estava na risota com o Vítor que

estava na carteira ao lado, ouvi um silvo junto a mim: o ponteiro passou-me rente às orelhas e foi partir-se

em dois no tampo da secretária. Era O Camboa, só podia ser ele! Mas eu gostava imenso do Gamboa!

 

Recordo o dito de alguém a quem o Pedrosa pediu um exemplo de uma “calote esférica” ter respondido:

“ a barriga do Senhor Professor”, sem que o dito Pedrosa tivesse levado a mal!

 

No Natal do 2º ano na Faculdade de Ciências, foi organizada uma visita de 8 dias à Corunha, sendo a grande maioria

dos participantes do AH, muitos da A e muitos em Medicina. Foi uma bela semana. Vou ver às fotos se também

lá estavas e qualquer dia falo disso.

 

Curiosamente o Aurélio e o Chico (alheira) tem memórias um tanto diferentes. Creio que andaram pela C e a saltitar.

Eu creio que poucos tiveram, como nós e o Mendo, a experiência de 7 anos seguidos sempre na mesma turma B;

embora houvesse vários casos na A.

 

Vais ao almoço de 9 de Abril?

Saudações

 

  Alberto

  2016

 

 

***

 

 

 

O Baptista (no fim) tem p  no entremeio, é Fortunato (no meio) e Alberto  (a começar).  

Trata-se portanto do meu sempre querido amigo Alberto Fortunato Baptista. 

 

 

***

 

 

4.

 

Agora, com Vossa licença e para meu descanso, também acrescento  eu: 

 

 

O Dogma

 

Em 1949, que há muito já lá vai, acabei incólume o meu 7º ano do Liceu.

 

Havia em curso uma reforma do Ensino Secundário e, entre outras coisas, ia acabar-se com o exame do 6º ano.

Dizia-se que, por conveniência de serviço, toda a gente iria passar na primeira época!.

 

Realmente todos passaram, mas eu, vejam lá, só porque era de Gaia, e um colega de turma cujo nome esqueci,

só porque era de Lamego, ficamos com uma disciplina, para mim muitíssimo chata, para a 2ª época. 

 

Foram soprar ao professor de tal disciplina, uma mui  mal-afamada fera, (cujo nome de baptismo,

nem sequer o da disciplina que ele regia, eu vou aqui mencionar), que na Rádio Renascença se dissera

que havia no nosso Liceu dois indecentes canalhas discentes, um oriundo de Gaia (eu) e o outro de Lamego,

certamente, com a condescendência e conivência, do mais que canalha docente, nas aulas ousavam discutir o

Dogma da Assumpção. Céus!

 

Porque fui agora mesmo ver à NET, esclareço que o Dogma da Assumpção, na altura, isto é, em 1949,

estava na forja e acabou mesmo por ser proclamado no ano seguinte, em 1 de Novembro de 1950,  

pelo mui mal afamado Papa Pio XII.  

 

 

  Isolino 

 

30 de Março de 2016

 

***

 

 POR MINHA HONRA, AQUI DECLARO QUE NUNCA NAS AULAS A QUE EU ASSISTI, E JULGO QUE A NENHUMA

DEVO TER FALTADO, TAL TEMA, OU QUALQUER OUTRO EXTRA CURRICULAR , POR ALI, OUVI  DISCUTIR.   

 

***

 

 

5. 

 

Diz-me o António Aurélio Fernandes

 

em 15 de maio de 2016

 

 

 

Ando há muito para te responder, mas sabes tão bem quanto eu quanto é “complicada” a vida de aposentado…

 

Quando nos encontrámos há anos (uns bons anos!) num almoço no Hotel do Porto, ao ver-te, recordei-me perfeitamente de ti, mas creio que continuas sem uma “imagem mental” do meu aspeto… Creio nunca fomos colegas de turma o que dificulta a lembrança; mas há uma série de gente que esteve na minha turma e de que não tenho a mínima ideia, o que é bem mais estranho.

 

Uma enorme curiosidade, que provavelmente nunca verei respondida, me ficou no tal almoço. Um “gajo” estranho sentou-se entre mim e o Alberto Baptista; apesar de ver que estávamos juntos, foi incapaz de propor uma troca de cadeiras (tínhamos de comunicar pelas traseiras qd ele se chegava à frente, pela frente quando ele se chegava atrás); não disse uma única palavra e, como remate de um belo almoço, vomitou tudo sobre a mesa…

 

Acho que nenhuma recordação me ficou dos tempos da juventude tão marcante como esta!

 

Entretanto aqui vão algumas recordações que não referiste naquele belo memorial que há tempos recebi através do Alberto (Baptista).

Um facto que me marcou muito e, pela primeira vez, me pôs perante o brutal e doloroso acontecimento da morta de um jovem; foi o falecimento do segundo filho do (reitor) Sena Esteves.

 

Havia um dia da semana que, para mim, era um tormento: o sábado de manhã. A manhã dedicada à Mocidade Portuguesa! Aquelas marchas, corredores fora, sob as ordens de um “chefe de quina”; frequentemente um colega de turma que, quanto mais medíocre, mais impunha a sua “autoridade”. Um, dois, um, dois, em frente marche! No final, todas as turmas se reuniam no campo e marchavam em conjunto numa longa fila, sob o comando do “chefe de castelo”. Como o vestiário não abria aos sábados, era de um ridículo confrangedor ver a malta a marchar “garbosamente” de gabardina e guarda.chuva pendurado no braço…

 

Houve uma ano, num dos meus primeiros anos, em que o cinema funcionou: foram apresentados alguns bons filmes. A iniciativa partiu de dois colegas um pouco mais velhos (mais tarde soube que tinham mais dois anos que eu e foram dois dos meus grandes amigos). o Fernando Lavrador (eng) e o Fernando Condesso (arqt). À nossa beira, eram uns “senhores”! Alguns anos depois, pertenceram ao grupo que fundou o Cine Clube do Porto. Não sei o que levou ao fim da iniciativa, mas fiquei com a impressão de que estaria ligada à projeção de um documentário sobre a visita de Sua Excelência o Venerando Chefe de Estado a Angola; não sei porquê, a projeção foi feita a uma velocidade dupla da normal. Um gozo monumental!!!

 

Um “acontecimento” memorável foi a organização da “bicha” (não garanto que tenha sido este o nome) que chegou a levar à intervenção da polícia. Centenas de nós íamos ao Bolhão comprar uma couve, um nabo, … e vínhamos a correr, em fila indiana, até ao liceu. Provocávamos tal perturbação do trânsito, que a polícia solicitou a intervenção do reitor para proíbir aquela “minhoquice”…

 

Mais alguns “sobrenomes” de alguns professores que não referiste:

o “Pichelim” (Filosofia), o “Figurão” (o Ramos de português; era assim que ele tratava os alunos), o “Caga Baixinho” (de Geografia), o “Cebolinha” (Serafim Pinto de Português).

 

 

 

 

 

 

*** Notas minhas

 

Não recordo a cara do Aurélio. Garanto que não o esqueci, embora não esteja a vê-lo nem saiba situá-lo naquele  famoso espaço. Da minha turma sei que não era.

 

á agora, em minha defesa, quero dizer que, embora pouco, algo falei do sempre bilioso Figurão. Foi  este o figurão que nos deu português- latim e um dia me disse que " Terra est rotunda"  e que "rotunda est Terra"  ia dar ao mesmo.

 

Das citadas falhas,  do  Cebolinha não falei porque tão apreciado  e usado componente culinário nunca meu professor foi. Lembro apenas que era baixo e gorducho, e imagino-o, com olhos muito claros, a ficar acentuadamente careca.

O mesmo aconteceu ao Pichelim, mas desta rara ave nada recordo!  Soam, no entanto, na minha pobre cabeça ruidosas campaínhas.

 

Também recordei o inesquecível Caga Baixinho que numa aula se atreveu perguntar ao Zé Dias, (um miudo manhoso muito espertalhaço, oriundo de Coimbrões), pelo  seu Caderno diário. Estou a ver o Zé Dias, aí nos seus 11,12 anitos, com os olhos muito esbugalhados, a soerguer-se  educadamente na carteira  para   responder que se tinha esquecido do famoso caderno  no bolso das cuecas. Do Caga Baixinho esqueci a cara com que ficou, mas acho que, se ele baixinho era, ainda mais baixinho ficou.

 

 

 

 

 

7. diz-me o meu jornal

PÚBLICO, SÁB 28 MAI 2016

 

 

 

_Salvar o Liceu Alexandre Herculano

_______________________________

 

JOSÉ PACHECO PEREIRA

Historiador

_______________________________

As casas que transportam

memória não podem

ser pedidas sem nos

 empobrecer a todos

 

Circula na Internet uma petição com título “Não deixem cair o Alexandre!”. Tem um ponto de exclamação no fi m, e bem merecido é. O Liceu Alexandre Herculano foi o “meu” liceu e, como muitos outros que por lá passaram, fomos ali que fomos “feitos”. O conhecimento do estado lamentável em que se encontra, com tectos a cair, ratos a passear por todo o lado, chuva nas salas e uma deterioração acentuada de todo o edifício, exige urgência e muita urgência. Por isso, esta é a minha maneira de assinar a petição.

 

O Liceu Alexandre Herculano é um edifício classificado, obra de um dos arquitectos mais importantes da época, Marques da Silva, e vai fazer 100 anos. Foi pensado como um liceu modelo, com fachadas com dísticos, inscrições, e molduras em pedra, colunas no interior, grandes corredores e janelas e tudo aquilo que não era comum encontrar a não ser nos grandes liceus “centrais”. Tinha vários recreios, piscina, auditórios, laboratórios, um museu, biblioteca, ginásios e um refeitório. Foi tudo feito com granito, mármore, madeiras, cada detalhe estudado e realizado, seja a ombreira de uma porta, seja um corrimão, e tinha enormes espaços e era banhado por toda a luz nas suas enormes janelas nas salas de aula e nos corredores. Foi feito para durar, mas, como todas as coisas, ameaça não durar. Foi caro de fazer, caro de manter e hoje, após anos de incúria, ainda mais caro de recuperar.

 

Ainda o conheci no seu esplendor, já nos anos escuros da ditadura. O liceu mantinha a glória dos seus primeiros anos. As aulas de Química e Física eram dadas nos laboratórios onde os bicos de Bunsen estavam implantados nas bancadas de lousa e mármore, para suportarem fogos acidentais e derrames de materiais perigosos. Nos grandes armários dos laboratórios havia instrumentos científicos e frascos com ácidos, sódio e potássio, e outros elementos mais complicados de pôr ao ar e à luz. Tinha um museu com uma série de animais empalhados e alguns em formol, mas, enquanto os laboratórios funcionavam, o museu era uma mera exposição nalgumas salas a que não era comum aceder. Havia uma biblioteca, mas como quase todas as bibliotecas da época estava bastante morta. Não era fácil pedir livros e muito menos saber o que lá estava. Era uma sala com o ambiente que se considerada normal numa biblioteca da época, escura, “encadernada” em encadernações, com os livros fechados em armários. Apenas quando um professor de Inglês deu algumas aulas na biblioteca para usar o gravador de fi ta que lá estava se usou a biblioteca, na verdade como paisagem.

 

 O liceu era cuidadosamente patrulhado pelos contínuos e os espaços interditos aos alunos eram muitos. Havia corredores em que só se entrava quando qualquer coisa corria muito mal. Esses espaços incluíam a secretaria, a sala dos professores e acima de tudo o proibidíssimo espaço da reitoria onde estava o gabinete do reitor e a sua casa, visto que habitava no próprio liceu. Aí os veludos e madeiras trabalhadas, sinal da pompa e autoridade, dominavam um gabinete onde várias vezes tive de ir para ouvir as admoestações do reitor contra o conteúdo do jornal do liceu, o Prelúdio, que dirigi. Aí ele me explicou que não se podia falar de Fernando Lopes Graça, nem publicar poemas sem pontuação, nem reproduzir um quadro de Picasso do período azul em que um rapaz nu segurava um cavalo (perguntei-lhe uma vez se era porque o cavalo estava nu), porque o jornal era também vendido no Rainha, o liceu das raparigas ao lado. O Alexandre era um sólido bastião masculino e fornecia um contingente de voyeurs, que esperavam em frente da saída do Rainha, que só tinha raparigas, meninas, mulheres. Não por acaso era um ao lado do outro, mas o Rainha era novo e o Alexandre já vetusto.

 

Como liceu com todos os pergaminhos na cidade e que competia apenas com o Liceu D. Manuel II, no PREC crismado de Amílcar Cabral e hoje Rodrigues de Freitas, os professores eram altamente prestigiados e alguns muito competentes, outros menos. Mas de um modo geral eram characters, personagens temidos e amados, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Entre os meus professores tive o dr. Agostinho Gomes — os nomes não são concebíveis sem o “dr.” —, que era uma coisa rara, porque era “escritor”, tinha livros publicados e oferecia aos melhores alunos os seus livros. Hoje está completamente esquecido. Havia o dr. Cruz Malpique, uma personagem muito especial, professor de Filosofia, que estava no liceu desde 1948. Não sei bem quantos Foi caro de fazer, caro de manter e hoje, após anos de incúria, ainda mais caro de recuperar Historiador. Escreve ao sábado livros escreveu, mas deve ultrapassar a centena de títulos, e escrevia um novo livro no verso das provas do anterior.

 

Encontrava-o muitas vezes na Biblioteca do Porto, a trabalhar com mangas-de-alpaca para não estragar a camisa ou o casaco. O dr. Malpique era um impressionista, não sabia muito de fi losofi a, mas transmitia o gosto pela filosofia e pelo pensar e isso é que caracteriza um professor. Havia o terror dos terrores o “Rapa-côdeas”, o dr. Gaspar da Costa, meu professor de Latim, e que era universalmente temido pelo modo destemperado com que caía em cima de qualquer infeliz que não soubesse as declinações. Havia igualmente algumas personagens pícaras, como o professor Godofredo, que dava aulas de Canto Coral, e era completamente incapaz de manter a disciplina nas aulas. Devo-lhe ter conhecido pela primeira vez, a vez que mais conta, o francês falado no Québec, porque ele via-se aflito em fazer cantar gente que tinha aprendido francês da metrópole, o sotaque do francês do Canadá.

 

E havia o reitor, Martinho Vaz Pires, professor de Alemão, autor da gramática canónica da língua, dirigente da União Nacional e da Mocidade Portuguesa, antigo deputado à Assembleia Nacional. Foi ele que me disse que o jornal não podia publicar poemas sem pontuação nem maiúsculas, porque isso era obra de comunistas. Demorei anos até perceber que o reitor, que nos seus anos de formação visitara a Alemanha nazi, estava a falar da Bauhaus e da sua tipografia a, considerada “degenerada” pelos nazis.

 

O reitor era da “situação”, mas muitos dos professores que me marcaram eram da “oposição”, gente que se relacionava com Namora e Ferreira de Castro e que convivia com a elite literária do neo-realismo e tinha prestígio na sua função de professores, entre outras coisas porque eram professores do Alexandre. As paredes do Alexandre Herculano são o local físico onde ainda habitam e aos seus tectos a cair pertencem a todas estas memórias. Não pertencem aos ratos, que esses estavam no laboratório, digamos que na forma de “não-ratos”.

 

Mas eu não pretendo salvar o Alexandre por causa das minhas memórias, nem de qualquer nostalgia, mas porque o liceu merece-o por si, pela sua qualidade edificada e pelo papel que teve na vida do Porto e pode tornar a ter. Nele se inclui ter deixado “memórias”, quase todas elas fortes, em por quem lá passou. Não é pequena coisa neste mundo demasiado esquecido e que faz do esquecimento um programa cultural, social e político. As casas que transportam memória ou memórias, e nelas a história interior de muita gente, não podem ser perdidas sem nos empobrecer a todos.

 

 

“Foi caro de fazer, caro de manter e hoje, após anos de incúria, ainda mais caro de recuperar “

 

 

 

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Com a devida vénia, transcrevi acima o que veio no PÚBLICO.

Mas quero fazer um reparo:

o nosso querido Liceu tinha e continua a ter, em bem alto-relevo, o seu nome escrito no topo do corpo central da sua frontaria. Lá, dizia assim:

 

 

LICEV DE ALEXANDRE HERCULANO

 

 

Tenho dito mas, para que conste, voltei  a dizer. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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VOLUME  II ... sem Fim

 

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