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Na Idade do Ferro

 VOLUME I

 

 

 

Passei, como muitas outras pobres vítimas inocentes, uns bons maus anos da minha vida num campo de concentração que ficou para a história conhecido com o nome de Siderurgia Nacional que ficava no Seixal, em Paio Pires, a futura Cidade do Aço.

   

Estranhamente, não me bateram demasiado, não me cuspiram em cheio, não me enxovalharam a ponto de me deixarem marcas muito profundas, nem nunca me seviciaram de forma violenta.

É verdade que muitos fizeram o possível por, encapotadamente e às vezes às escâncaras, me sacanear, tal como faziam entre si, uns aos outros, na luta pelos melhores lugares e abertura de mais amplos horizontes. Como, em qualquer parte que se esteja, “sacaneare humanum est”, posso considerar-me um sobrevivente bastante feliz.

    

Pode facilmente depreender-se que nunca me fuzilaram, embora hoje, a tanta distância, saiba, com muito fundamento, que devo ter estado, mais que uma vez, numa ou mais listas de espera.

  

Creio, com a longa experiência que a vida me deu, que o verdadeiro prazer deles era terem-me ali: amarrado, subjugado, amaldiçoado, aprisionado, ignorado e muito bem domesticado. 

 

Dizia-se, na altura, que a grande diferença que havia entre a Siderurgia e a Prisão de Alcoentre era que nesta as famílias iam visitar os presos, enquanto que na outra, a Siderurgia Nacional, se dava exactamente o inverso, e eram os presos que iam visitar as famílias.  

Havia pais que quase só viam os filhos mais pequeninos a dormir. Acordados, viam-nos apenas aos domingos, depois da missa até à hora de eles irem cedinho para a cama, não só por estarem perdidos de sono, mas porque tinham de ir cedo para a creche na manhã seguinte, bastante depois do pai ter ido para o trabalho.

  

Muitos dos miúdos cresceram sem saberem durante muito tempo que tinham pai, ou, então, julgavam que ele emigrava ao domingo à noite e voltava no sábado à tarde, desaparecendo de casa sem lhes terem dito sequer adeus, meu filho, até à semana que vem, vê lá como te portas, não aflijas a mamã.

   

Embora eu não fosse, nem amigo, nem sequer conhecido dos guardas da portaria, e porque também deles inimigo não era, consegui entrar. Todos eles tinham sido guardas-republicanos dos mais ferozes e da inteira confiança de um futuro democrata, um muito temido homem que usava pingalim e monóculo, cujo nome me anda há que tempos a incomodar, metido debaixo da língua. 

 

Vá lá que me deixavam ir dormir a casa que, de facto, não era casa nenhuma, mas, sim, uma espécie de albergue onde caridosamente, a troco duns muito bem contados escudos, tinha o direito de pernoitar.  

 

Vivia em quartos alugados a gente com dificuldades, onde tomava, de pé e à pressa, um ligeiro pequeno-almoço que consistia numa banana e um copo de leite frio. Almoçava no cativeiro e jantava fora, em geral no Café Dragão, na companhia de um ou outro presidiário em liberdade provisória (e vigiada?), bem no coração da Almada do pré 25 de Abril, na conhecida Praça da Renovação. 

 

O meu grande companheiro de ágapes era o Dr. António, de seu nome completo António da Silva Júnior (SJ), um contemporâneo na Universidade do Porto que nasceu com muito orgulho em Amarante e que se vai juntar a Pascoais e Souza Cardoso na eterna dignificação da sua terra.

 

Um dia, se o Avelino Ferreira Torres deixar, vai ter junto ao lindo Tâmega, um modesto, como ele é, busto sobre um simples pedestal de granito não trabalhado.  

Na Siderurgia, Silva Júnior (SJ) trabalhava no Laboratório que o Pacheco de Carvalho (PC), um homem cheio de dentes brancos e sadios, telecomandava a partir do seu gabinete na Rua Braancamp,7. Em Paio Pires subcomandava o Carlos Luna (CL), um homem cheio de espírito, mas muito vazio de dentes, apenas quatro ou cinco cavilhas enferrujadas espetadas a esmo nas suas quase desérticas gengivas, onde cada peça era um ameaçado oásis.

Com eles trabalhava o sorrateiro, matreiro e um tanto linguareiro Domingos Sequeira (DS).

 

Todos eram gente de grande, ou melhor, enorme carácter, coisa muito rara nos tempos que já tinham corrido, nos que iam correndo e nos que ainda hoje continuam por aí a escorrer.  

 

O Dr. António (é pelo primeiro nome que em Amarante e em terras pequenas tratam os doutores) era já meu conhecido da Universidade do Porto, onde, aliás, muito pouco convivemos. Ele licenciou-se, na Faculdade de Farmácia, em frente à velha e linda Igreja de Cedofeita, e eu, dali não muito longe, na Rua dos Bragas, na Faculdade de Engenharia, logo acima de uma capelinha que nem é linda, nem feia  nem muito velha.  

 

Só na Siderurgia e, por tabela, em Almada passámos não só a conhecermo-nos como a fazermo-nos grandes amigos.

 

Silva Júnior, com já disse, foi o presidiário que durante largo tempo jantou comigo no Dragão e foi com ele que também passei longos bocados de tardes de Domingo, ambos sentados na sala de estar da Pensão Morais, em Lisboa, a captar atentíssimos, quase sem intervenção, longas conversas animadas pelo Senhor Cabral, de perna descontraída muito bem cruzada, e pelo anafado Senhor Santos, de perna curta e gorda impossível de cruzar, com os seus outros dedicados hóspedes. Pode dizer-se que todos estes eram alentejanos absentistas, uns totais, outros parciais, que vinham frequentemente a Lisboa ver as revistas do Parque Mayer, mesmo ali ao lado, e outras chachadas muito próprias para gente a ficar ou a já estar mesmo aparvalhada.

 

Um dos hóspedes mais frequentes era o reboludo Senhor Águas que, por singular acaso, até era algarvio e não alentejano. O Senhor Águas devia ser homem com bastante pastel o qual deve ter crescido exponencialmente com a venda de terrenos que possuía em Armação de Pêra, nos primórdios do ataque desalmado dos patos-bravos ao Algarve.

Sempre que passo, enjoado e a fugir em pânico, pela sua Armação, (sem ofensa), me lembro dele.

Era um indivíduo baixo, redondo, muito ovalizado e que tinha uma voz algarvia muito fininha que perfurava rapidamente os tímpanos mais finos e debilitava gradualmente os mais espessos.

O senhor Águas foi um dos primeiros pecadores passivos, (sabe-se lá se também dos activos!), daquele grande desastre ecológico que ocorreu e continua a ocorrer naquelas longínquas terras do Sul que tanto nos custaram a conquistar aos infiéis.   

 

Em Almada havia dois Cafés, lado a lado, separados apenas pela entrada do prédio de três andares, (onde se instalaram nos baixos), e por uma tabacaria que dava para aquela praça.

 

Um, o maior, era o Central, o outro era o Dragão Vermelho, o tal que eu mais frequentava.  

Os referidos Cafés tinham no exterior e á sua frente esplanadas contíguas, voltadas para a Praça da Renovação, onde, especialmente à noite, a tomar cafés e, aos domingos de manhã, a beber um Martini, caía toda a gente semi-chique, tigela e meia-tigela. Chique não havia, ou, se havia, não se notava nem nada dava a entender. 

   

O Central, embora frequentado pela maioria da populaça, por ser mais amplo e ter alguns refúgios recatados, era o preferido dos chamados intelectuais. Ali escrevia desalmadamente Romeu Correia, despontava Fernando Pernes, que havia um dia ir para a Casa de Serralves, no Porto, e advogados, como o Herculano Pires da esquerda moderada e o Luís Álvaro, uma ave nocturna muito minha amiga, da direita também moderada. Os dois moderados de sinal contrário, por todas as razões e mais esta, mantinham-se em guerra intestina e odiavam-se figadalmente. 

 

Luís Álvaro era dos Rotários, o que na altura dava bastante penacho, e sempre pôs uma bola preta em Herculano para que este dentro deles não conseguisse pôr um só dedo dum qualquer pé . Este e outros rejeitados, cheios de despeito recalcado, haviam de vir a criar os Lions de Almada, não por amor aos ceguinhos, mas como adequada retaliação. 

 

O Dr. Luís Álvaro, cerca de vinte anos mais velho que eu, era um jovem companheirão, muito observador e crítico mordaz, com quem me fartei de divertir. Ficávamo-nos umas vezes por Almada a tagarelar e deslocavam-nos algumas até ao Muxito mordiscar um pouco de ambiente nocturno a ouvir, ao vivo, um pouco de música dançável, às vezes com uns fadinhos pelo meio, muito bem cantados pela Saudade dos Santos.

 

 Nas amenas noites de Verão íamos tomar um cafezinho numa qualquer esplanada da já insuportável Caparica, onde a Dona Ausenda, uma matrona livre de compromissos, não sei se solteirona, viuvona ou outra ona qualquer, a ele se atirava descaradamente e ele dela, pelo menos em público, cortesmente fugia a sete, ou mais, pés. Algo me diz que ela era uma das suas consulentes “habituées”, daquelas que o iam ver frequentemente ao consultório, como quem ritualmente se vai benzer à bruxa.

  

O advogado Luís Álvaro vivia e tinha o seu escritório no coração de Almada, bem junto ao jardim e ao novo Tribunal.

Conhecia meio mundo, muito mais por dentro do que por fora, e ia-me contando, sem nunca quebrar o sagrado sigilo profissional, engraçadíssimas histórias, muitas delas muito podres, de toda aquela gente de casca muito fina e interior muito grosso de quem ele, de ginjeira, conhecia muito melhor o tenro e escondido miolo do que a dura e bem visível casca. Ríamo-nos os dois, com muito gosto, à custa das graças envenenadas de um e das tretas não menos venenosas do outro, e vice-versa. 

 

Ao Dragão ia gente como eu, ou até pior; iam, por exemplo, os irmãos do trio Odemira e vários fadistas e cançonetistas baratos e muito mal cotados; também iam algumas senhoras acompanhadas dos seus maridos a quem, com todo o empenho, notoriamente punham os palitos, para não estar para aqui, em frente de toda a gente, a dizer cornos. 

   

Na Praça da Renovação, hoje abrilescamente designada por Praça das Forças Armadas, havia uma papelaria, uma outra tabacaria, onde eu comprava o “Janeiro”, uma farmácia, um oculista, a Calhandra, (que era um snack-bar), o Stand Mirco, os Correios e, que me lembre, pouco ou nada mais. 

 

O dono da minha tabacaria, onde todos os dias comprava o “Janeiro”, chamava-se Alberto e era casado com a irmã do Júlio Rosado. Este tinha casa por ali, não sei onde, e era meu companheiro de desterro. Em dada altura, por feliz acaso, no presídio da Cidade do Aço, o Rosado foi meu colaborador e vizinho de cela e, desde aí, nos fizemos,  cria eu na altura, bons amigos.

 

Na minha cela éramos só dois, eu e o engenheiro Ferreira de Almeida, um homem muito aplicado, vindo dos velhos tempos taylorianos, que cronometrava tudo o que, por cima, por baixo e pelos lados, gravitava à sua volta, para depois trabalhar, pelo menos, até ao centésimo de segundo,os tempos recolhidos por si e pelo João Pinto Galante, também membro da nossa ousada equipa de exploração.

   

Na outra cela ao lado estavam uns nove ou dez presidiários:

o já citado Galante, o Rosado, o Manecas, o Trindade, o Coiteiro, o Santos Silva, o Martins dos Santos, o Féria, o Carlos Vieira, o Pin...Pin... Pinto Álvares e .... não me lembro de mais ninguém. Tudo boa rapaziada minha amiga, de viçosa cepa, que me deixou imensas saudades.  

 

Ali se produzia uma espécie de Jornal da Caserna, onde essencialmente figuravam as produções, os consumos e os rácios do dia anterior; Esse jornal era distribuído, de porta em porta e gratuitamente, pelos vários sectores fabris.

Como todos os outros jornais do País, estava, creio eu, sujeito a velada censura, neste caso, não prévia nem demasiadamente  severa, mas até bastante condescendente "a posteriori", sem nunca ter levado ninguém para o chilindró. Esse austero jornalzinho não tinha uma secção dedicada ao futebol, pelo que, estou mais que certo, não mais que meia dúzia de eruditos o deviam ler e prestar alguma atenção. Cesto!

 

Cada um dos isentos “jornalistas” tinha à sua frente, bem em cima de cada secretária, uma descomunal máquina de calcular, tipo caixa registadora de casa de comércio, cheia de trens e mais trens de rodas dentadas lá por dentro.

 

Na cela onde trabalhavam, o ruído do ranger dos dentes das rodas dentadas mais o barulho do rápido e certeiro matraquear nas teclas era algo de assustador. O Rosado era a quem, montado no 318 (ou era o 316?), o bem confortável 2 CV da casa, cabia a árdua tarefa de, logo pela manhãzinha , ir de porta em porta pelas Unidades Cooperadoras de Produção, recolher os dados fresquinhhos do que recentemente ali fora produzido, para logo, logo, logo, estes serem fortemente matraqueados pelos musculados e certeiros dedos dos operadores de serviço.  

  

A minha alcova dava, com o devido respeito e todo o pudor, para a da Manuela, uma jovem “teenager” que ia, muito à pressa, dormir no seu fofo leito, fora de portas, lá muito longe em ............ Odivelas, num dormitório situado na margem direita do rio Tejo, bastante afastado do, suponho eu, algo duro, leito deste tal rio que banha Lisboa, Almada e outras bem conhecidas partes.  

Coitada, o que a Maria Manuela de Brito Viegas não deve ter passado! De Segunda a Sábado, sempre do mesmo: Odivelas, camioneta, cacilheiro, camioneta, Fogueteiro, dia livre, presa no emprego, camioneta, Fogueteiro, cacilheiro, camioneta, Odivelas!

Odivelas? Odibolas, para não dizer Odi ...“outra coisa”, como me está mesmo a apetecer dizer.

   

A Manuela, para passar o seu tempo de reclusão, escrevia à máquina, uma daquelas tipo Olivetti dos anos cinquenta que faziam uma barulheira infernal por cada letra martelada e um “tilim” celestial por cada linha, ou ponto-parágrafo, zás, a que se chegava.

 

A jovem mocinha era mais despachada que um raio e escrevia, à máquina, muito mais depressa do que qualquer um dos outros falava, à boca. Ela, sim, ela é que era uma verdadeira máquina, mas, ao contrário das outras, tristes, secas e estúpidas como as suas teclas, mostrava-se sempre alegre e, por ser um tanto gorducha, não tinha ponta de teclas à vista. Era inteligente e mais veloz e eficiente que qualquer outro, fosse ele o Pepe (rápido) ou uma jovem lebre qualquer. 

 

Noutra cela anexa à da Manuela, que ficava assim a fazer de carne entremeada, vivia o Mário Trigo Trindade que era engenheiro e colega de curso do Mário Höfle de Araújo Moreira.

 

Trindade, que também era Mário, passou meses e meses de clausura, sempre a afagar com os dedos os muito ralos e finos cabelos que ainda tinha na cabeça, a alinhavar dados de maneira lógica, o que, hoje, com o poderoso Excel poderia fazer em alguns dias.

Este presidiário veio duma qualquer barragem hidroeléctrica lá do norte, onde esteve uns anos desterrado até que Araújo Moreira se lembrou dele, (ou ele de Araújo Moreira se lembrou), e o convidou, (ou ele se fez convidar), para alinhar na sua promissora equipa da Siderurgia Nacional. 

 

O Mário Trindade, certa vez, disse-me que aceitou sair da tal barragem onde vivia, sem olhar um único segundo para trás. Perguntei-me, muito intrigado, como é que devia ser o raio da tal barragem se ele se veio meter num sítio daqueles que eu julgava pior não poder haver!?  

Há uma explicação muito aceitável, como já a seguir vamos ver, que ele certa vez sem reservas me confidenciou. 

  

A coisa que na tal Central mais lhe tinha enchido o saco era que , para além do dolce far niente, havia o cerimonial de receber as visitas a quem despejou milhares de vezes a mesma lengalenga. A gente que lá ia era, pelo menos hidro-electricamente falando, quase toda ignorante total. A maioria, além daquela aceitável lacuna técnica, era constituída na sua esmagadora maioria por pessoas completamente idiotas que lhe faziam perguntas também idiotas, das mais embaraçantes e hilariantes que se possa imaginar:

 

“Quanto tempo leva o elevador a chegar lá a cima, para baixo o elevador vai mais depressa do que para cima, na água há muitas rãs e cobras de água, vem cá muita gente pescar achigãs, quando a barragem se esvazia como é que voltam a enchê-la, as pás das turbinas têm cabo, as turbinas dão choque, etc. etc.“ 

 

Voltando muito atrás, tenho que dizer honestamente que a culpa de eu ter sido apanhado e ficado preso foi inteiramente minha!

Assumo-o frontalmente e não recrimino ninguém. Fui eu, eu quem, por vontade própria e sem a imposição de quem quer que fosse, se foi inscrever no Quartel-General instalado na Rua Braancamp, 7, em plena Lisboa, mesmo à vista impávida daquele sujeito distraído que está hoje num elevado poleiro a ver passar o trânsito e que, no tempo de D. José I, foi feito marquês e era um déspota iluminado que mandou às cegas exterminar todos os Távoras, mas para compensar, acabou com os autos-de-fé e com a mais que Santa Inquisição. 

 

O Marquês, apesar de ter sido um homem de larga e longa visão, nunca deve ter pensado que um dia iam pôr uma estátua sua com vistas para a Sede da Siderurgia Nacional, Rua Braancamp, 7. Pudesse ele ainda mandar, já hoje teria mudado para a Quinta do Mocho, para o Casal Ventoso ou o Parque Mayer. Por muito mau que fosse o sítio, sempre estaria melhor do que ali, a toda a hora a ver engarrafamentos e gente, boa e má, a entrar e a sair na Rua Braancamp, 7, muita dela, gente que ele gostaria de, pelas suas próprias mãos, exterminar, exibindo a cabeça decepada pendurada pelos cabelos numa das mãos.

    

Pode dizer-se que, mesmo antes de entrar naquela guerra, me rendi ao inimigo, cobarde e incondicionalmente, ficando inteiramente à sua impiedosa mercê. 

 

Eu que era oriundo de Valadares, uma tranquila freguesia de Vila Nova Gaia, que passou a ser muito mais pacata desde que de lá saí, e tinha tirado a “carta” no Porto, pretendia conduzir pelas ruas e vielas que conhecia, e viver perto da terra onde sempre tinha vivido, junto da família e dos velhos amigos de infância e juventude. 

 

Para os sulistas que não o saibam, Vila Nova de Gaia fica mesmo em frente ao Porto, e tem, hoje, em 2008, do lado de Gaia, o Menezes (filho dum senhor chamado Lopes) que é Luís e, do outro lado do rio, o Rui que também é Rio.  

Com tanto rio, à Foz do Douro, uma zona muito bem onde mora, por exemplo, a Rosa Mota, hoje, já muita gente chama o Delta do Douro. 

  

No Porto havia, na altura, muito pouca oferta de emprego apetecível e quem não tinha cunhas e queria arranjar um comprava o pestilento pasquim publicado em Lisboa chamado Diário de Notícias. Como eu não gostava sequer de sentir o cheiro daquela papelada, que borrava muito mais os cérebros do que as mãos, preferi eu próprio ir a Lisboa ver o ambiente e inscrever-me, porta a porta, no que me parecia ser mais convidativo.

 

Foi assim que me fiquei pela Argibay, mesmo ao fundo da Avenida Infante Santo, onde avantajados e robustos escravos de raça branca, em troco nu a escorrer suor, malhavam e moldavam com um enorme marreta espessas chapas de aço ao rubro, para delas fazerem os tampos das caldeiras e partes de outros equipamentos não tão pesados como estas; tudo isto com uma barulheira infernal, muito mais ensurdecedora que o silêncio dos bosques onde nem sequer vivem passarinhos, nem nunca se fizeram piqueniques de garrafão. 

 

A Argibay era gerida por gente na casa dos cinquenta, muito válida e viçosa, vinda do então pacífico exército, que já estava na santa e merecida reserva. Eram dois distintos militares, um coronel, outro um tenente-coronel, e muito boa era essa gente de paz que me acolheu com a maior simpatia e extrema correcção, o que nunca mais esquecerei, apesar de lá ter estado apenas um curto mês.

 

O meu rendimento laboral tinha sido nulo e tenho a consciência de que estorvei mais do que fiz alguma coisa de útil para a Argibay. Mesmo assim, queriam-me pagar esse mês perdido (por mim e por eles), o que eu, teso como um carapau, mas mais honesto que uma faneca e muito mais envergonhado que uma lula, não aceitei.

 

Aproveito para dizer que não faço a mínima ideia se as fanecas são honestas, nem se as lulas são envergonhadas. Tal como se passa cá fora, dentro de água, também deve haver de tudo. 

 

Na altura, na maioria esmagadora dos empregos, pagava-se em dinheiro vivo, metido em envelopes em notas de 20, 100, 500 e até 1000, quase sempre virgens e com a numeração seguida. Tais envelopes eram entregues em mão e por fechar para ser possível conferir “en el ato”. Apareceram mais tarde  notas de 5000, que se viam de relance e de longe a longe, que a gente forreta e desconfiada guardava debaixo dos colchões ou escondida no meio do folhelho.

 

Foi-me difícil evitar que aquela honrada tropa da Argibay me metesse o mais que imerecido envelope num bolso. Como, além de honrada, era também educada e séria, compreendeu, com naturalidade, a razão de eu o não querer aceitar.   

Com um grande e sincero abraço, disse adeus à Argibay! 

 

Como dizem hoje todos os jogadores de futebol sempre que o seu clube perde: “agora, há que levantar a cabeça e pensar no próximo jogo.”  E o próximo jogo ia ser na

 

Siderurgia Nacional,

 

um promissor clube em formação que ia entrar directo na Primeira Divisão Nacional, mas que ainda tinha em construção, no meio de imensos charcos e lamaçais, não só os vários campos de jogos, como todo o restante complexo desportivo.  

 

Aqui, o “big boss” chamava-se, por inteiro, António Sommer Champalimaud, mas era mais conhecido por Champas. Nascido em Lisboa em 1918, era um homem valoroso de olho muito aberto que morreu de olho todo fechado, cego de rico à custa do que lhe deixaram, e do que ele acrescentou com a sua inteligência, a sua audácia, as suas iniciativas, as suas manhas, as suas pulhices, os seus golpes e o seu incansável apego ao trabalho.

Como era mais podre do que cego de rico e um homem de pouco paleio mas de grande genica, criou milhares e milhares de postos de trabalho, teve incontáveis inimigos e por muitos foi odiado, a maior parte gente a quem deu a oportunidade de ganhar honradamente e, um pouco acima da média, o seu pão de cada dia.

 

Champas devia ser peludo mas era bastante magro, muito a puxar para o escanzelado. Dizia-se que, como  qualquer animal digno desse nome, tinha alturas em que andava terrivelmente irrequieto, cheio de comichões nas virilhas e debaixo dos braços, devido aos violentos e frequentes ataques de cio que, sem aviso, frequentemente o  atacavam. Mais que uma vez foi apanhado no seu gabinete a correr como um louco atrás das suas esbeltas e bem seleccionadas secretárias que dele fugiam aos gritinhos a dizerem não me agarra, não me agarras, ao menos fecha a porta,  ó querido, como é que se abre o divã?

Uma das suas mais virginais perseguidas, cujo nome devia aqui ser mencionado, mas que por razões óbvias vou omitir, chegou a pedir a demissão, e demitiu-se mesmo, alegando estar cansada de tanto andar a fugir à volta das cadeiras, a trepar para o tampo das mesas e a meter-se atrás de um grande e pesado armário que o cioso e teso magricelas tinha no gabinete e que nunca teve forças para, sozinho, arrastar. 

 

Quando, lagarto, lagarto, entrei na Siderurgia, em 9 de Setembro de 1959, o cálculo dos salários era feito na base de Xis escudos à hora e o mais baixo valor de Xis da grelha salarial eram quatro escudos, o que dava, por dia de oito horas 32$00 (trinta e dois). Lembro-me que na sempre explorada região Norte ganhar 20$00 por dia (2$50 por hora) era, ao tempo, coisa corrente.     

 

Ainda ele não está muito longe, mas voltemos ao sacana do Champas.  

 

Champalimaud, antes desta vida se partir alegremente, deixou um testamento em forma de bofetada de luva imaculadamente branca que fez emudecer os sem número invejosos seu eternos detractores que nunca mais se atreveram a pronunciar o seu nome. Muitos deles, que mal sabiam ler e escrever, sempre deturpavam encarneiradamente o seu nome e chamavam-lhe Champô Limão.

Que falta aquele grande sacana agora nos faz!  

 

Fui-lhe apresentado três vezes, sempre por Araújo Moreira. Duas, fugazes, dentro do elevador da Sede, Rua Braancamp, 7, e uma outra mais prolongada, numa recatada tarde de sábado, no estaleiro todo revolvido e com lama a dar pela maioria dos pescoços, onde estava a nascer o complexo fabril, com todos a olharem para o fundo dos ciclópicos buracos destinados às gigantescas fundações.

 

Como nunca mais o voltei a encontrar, nunca mais lhe fui apresentado, e ele, um homem de guerra, morreu em paz sem fazer a mínima ideia de quem eu era nem do que andava por ali a fazer, todo andrajoso, de chapa ao peito e capacete numerado na cabeça. 

 

Um dos seus assessores executivos, a quem eu nunca nos dias da minha vida pus o olho em cima, era uma figura muito da direita, mas sinistra, que usava sempre um caco num olho da cara e, em ocasiões de festa, ameaçador pingalim numa das mãos. Havia eu muito mais tarde, já em 1974, de o ver na televisão a preto e branco todo vestido a rigor e, claro, de caco no olho, (o olho era o direito), a brincar aos democratas ao lado de alguns que também queriam passar por o ser, mais de uns muito poucos que o eram mesmo.

  

Não me lembro agora bem como tal peça se chamava, mas sei que António era o seu primeiro nome e que, olá!,  era alentejano.

Como se depreende, nunca lhe fui apresentado e se fosse teria de lhe ter feito energicamente a continência, bater sonoramente os tacões e, às tantas, se fosse sábado à tarde, tombar para sempre num qualquer buraco por ali aberto, cheio de água e lama lá no fundo.

  

Quase diariamente, como se estivéssemos num Quartel-General em tempo de guerra-fria, havia, afixadas em painéis presos nas paredes, ameaçadoras Ordens de Serviço que ele, de caco no olho, emitia e assinava sobranceiramente por baixo.

Cavalgar, chibatar, ditar ordens, empertigar-se, impor-se e limpar periodicamente o caco eram as suas actividades mais marcantes.    

Ainda não me lembro do nome dele todo, mas recordo-me que o tipo, na altura, era major.

 

O posto de major foi sempre muito conceituado até ao dia em que um outro conhecido valente gabiru atingiu tal posto, para depois ser deposto por causa duns negócios de batatas e voltado a ser reposto por uns batatas quaisquer que tinham a obrigação de saber quem aquela linda batata era. 

 

O treinador de bancada era um tipo que deu à costa e era um burguês todo emproado, a quem por isso chamavam, por chalaça, creio eu, o nobre da costa, de seu primeiro nome Alfredo, como aquele velhote casmurro que cantava muito bem o fado e que, em jovem, tinha sido marceneiro.

Alfredo não passava cartão a ninguém abaixo da sua bitola, à excepção de uns quantos eunucos que lhe lambiam fervorosamente as botas para lhe aquecer os pés e apaziguar as frieiras. 

Estava da Costa muito bem entrosado no seio fascista, mas num golpe pós abrilino, mudou-se de seio e foi, sem ponta de vergonha, como independente, mamar para o grupo socialista, uma prestimosa casa-albergue que muita gente necessitada ainda hoje continua a acolher. Chegou mesmo, por muito curto tempo, cerca de três meses, para grande decepção sua, a ser Primeiro-Ministro desta grande choldra, ( choldra quer dizer merda), em rápida expansão que, até hoje, nunca mais parou de se afastar nem deixar de o ser. 

 

Tenho pena de, nesta altura, ainda não me vir à cabeça o resto do nome do tipo do monóculo, mas quando ele vier, prometo que digo. Que era António, alentejano e major já sabemos nós que era. Adiante.

 

O tal nobre senhor, tinha raízes goesas e era de tez amorenada. Ignorava-me, como aliás fazia ostensivamente a muitos outros reles serventuários tanto ou mais andrajosos que eu. Essa ignorância, hoje, muito me honra e enche de inusitado júbilo.

Um dia, Alfredo, marimbando-se para a Siderurgia, saiu para formar uma empresa para competir altivamente com a Profabril, do grupo CUF dos Melos, decerto apoiado por Champalimaud desejoso por atacar de cernelha, já que não era boa táctica atacar de frente, estes seus tão odiados rivais e inimigos. 

 

Agora, uma pausa para um aparte que vem muito a propósito.  

 

A empresa que fui ante-estrear em Portalegre, a Finicisa, foi instalada pela Profabril em 1964. 

Quase todos os anos, a Finicisa, Fibras Sintéticas, SA se ia expandindo, e sempre era chamada a Profabril para coordenar o projecto que nos chegava em tosco da casa mãe inglesa, a ICI.

O nome “Finicisa” vem de Fin (Fino), mais ICI (Imperial Chemical Industries), mais SA (sociedade anónima).

A Finicisa era um encanto de fábrica, (o mui ilustre arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles meteu lá o seu bem afinado dedo) encaixada numa zona paradisíaca onde passava um riacho, na altura cheio de vida piscícola, a Ribeira de S. Vicente.

 

Fabricava-se fibra poliéster com a marca Terylene (“Terylene marca o rumo”, era um badalado slogan) a partir de polímeros, até certa altura, fornecidos pela casa mãe. A Finicisa tem por mim cantada parte da sua epopeia, num outro volume arquivado neste mesmo sítio (site).   

Muita gente do nosso e doutros países usou roupa feita com fibras que cheguei a ver e, muitas vezes, desculpem-me o erótico abuso, a apalpar.  

Uma outra vez, em que o projecto de ampliação era de maior envergadura, resolveu-se consultar, além da Profabril do costume, uma firma concorrente liderada por aquela nobre e excelsa figura de tez morena. Fui lá com um meu grande e leal amigo, o Doug Skelly, o inglês que vinha mais uma vez liderar a obra de ampliação.  

Apareceu a recebermo-nos, de sorriso servido lindo buleiro de prata maciça toda muito bem trabalhada, o tal da Costa que além de Nobre também era Alfredo, como o velho Marceneiro. Muitos anos haviam passado e aquele pastorinho teve naquele dia uma visão, com o Sol muito excitado todo a rebolar-se no firmamento. Com a divina graça de Nossa Senhora do Amparo, reconheceu-me, e viu-me como se eu estivesse a pairar em cima de uma azinheira num dia muito nebuloso, a ameaçar chuva e trovoada da rija. Se não fosse o Doug Skelly estar ali, tenho a certeza que, com o clarão que nos encandeou, se ia ajoelhar e tentar lamber-me as mãos.

Estão a ver como este mundo está cheio de filhos de mães que não sabem quem são os machos que lhes fazem os filhos?

 

Perdi-me! Onde é que íamos? Exactamente, na minha saída da Argibay para ir mudar de clube.  

 

Por carta, fui convocado para comparecer urgentemente na Sede da Siderurgia Nacional, Rua Braancamp, 7, para falar com não me lembro quem, mas que verifiquei ser um senhor todo lustroso, muito bem perfumado da cabeça até aos pés, que tinha um gabinete com o tamanho e o aspecto de uma grande discoteca dos dias de hoje. Era Dr. não sei de quê nem interessa, como tem sempre que ser toda a gente neste nosso país, e era, também não sei porquê, o manda-chuva do Serviço de Pessoal.  

Tinha ele, que eu tivesse conseguido ver, duas secretárias. 

Uma, de madeira exótica muito bem polida e imaculada, onde ele trabalhava sem quase pousar as mangas do casaco no tampo, era um espanto (!)

A outra, de boa carne e de muito bem delineado osso, certamente criteriosamente escolhida por ele, era um multi espanto (!!!!!!) também com algo de exótico, mas boa como o milho, onde ele, sem fato, gravata, nem roupa de baixo se devia periodicamente deitar todo inteirinho, em princípio, de barriga para baixo, num delirante movimento de vaivém com aceleração variável que acabava sempre em vem, até recomeçar tudo com um novo vai. 

 

Todos sabiam que ele era um bom carnívoro, mas com uma grande costela vegetariana que o impelia a atirar-se insaciável ao milho integral. Glutão que era, comia este gostoso cereal, sem deixar um só mísero grão, nem aos galos nem aos pardais esfomeados que por ali pairavam à espera das sobras, com os papos vazios a darem horas, minutos e até segundos.   

Com toda esta conversa, já me perdi outra vez.

 

Ah! Estávamos, fui ver ali atrás, no sumptuosamente obesceno gabinete.

  

Tinha eu (já!) que preencher uma papelada qualquer, ir fazer uma inspecção a um médico no Seixal, e, meu caro, apareça no dia tal em Cacilhas às 07:30 para apanhar uma camioneta da Beira-Rio que está lá à sua espera. Nesta altura, todo vaidoso por dentro e a disfarçar que não era vaidoso por fora, até julguei que tinham alugado uma camioneta de quarenta e tal lugares só para mim.  

É o tinham! Passa-me cada coisa pela cabeça! 

 

Estava lá malta de encher com um pau e havia mais que uma camioneta não só à minha espera, como à de muitos outros assalariados: doutores, serralheiros, vadios, bate-chapas, pintores, engenheiros, topógrafos, carpinteiros, estivadores, pedreiros, eu sei lá, gente para tudo, do tipo pau para toda a colher. Não havia drogados,( embora a vida fosse, como hoje, uma grandessíssima droga ), mas havia ensonados com ar de quem se deitou lá para as tantas e não teve tempo suficiente para curar nem metade da piela.   

   

A camioneta partia às 07:40 e partiu mesmo, meu Deus, comigo e os outros muito bem fechados lá dentro. Passámos pela Cova da Piedade, por Corroios, pela Cruz de Pau, e, no Fogueteiro, (vamos ter festa, pensei eu logo), cortámos à esquerda a caminho da tão badalada e ansiada Cidade do Aço que não tardaria a aparecer.

E apareceu: Paio Pires, dizia numa placa toda partida, mas muito bem legível para quem estivesse habituado a decifrar enigmas com peças lascadas.   

 

Chegámos e ninguém estava à minha espera! Nem sequer a Sociedade Filarmónica União Seixalense, que eu julgava ter sido convocada para me receber, ali apareceu! Fiquei bastante magoado, mas encaixei. Este viria a ser o meu primeiro grande encaixe, dos muitos que tive de engolir pela vida fora.  

Toda a gente saiu apressada rumo à portaria que era guardada por verdadeiros “Pitbull” esfomeados, muito bem adestrados,

terrivelmente violentos e deliberadamente sem açaimo, todos eles fardados a rigor dos pés à cabeça, como gostava o safado António do pingalim: botões de latão a espelhar, botas cardadas, polainas até quase ao joelho a brilhar, calças de fole cinzentas praticamente novas, oferecidas, segundo me disseram, pela Gestapo, que também lhes ofereceu bonés de pala quase vertical. Toda essa canzoada tinha alinhado na GNR e prestava vassalagem ao António do caco, que lá os meteu, e deles, noutro quartel, anteriormente também tinha sido chefe.   

 

Ai, como é que se chamava o gajo?! António já eu sei que era ...

 

... Sebastião! ...  António Sebastião, isso mesmo!!! 

 

 

(por razões técnicas, e para todos descansarmos um bocadinho,  por agora,fico-me por aqui.)

 

 

 

 

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